domingo, novembro 18, 2018

“Descentralizar ou Transferir? Defender o Poder Local Democrático” (2ª parte)

(Continuação)

2.       A descentralização consagrada na Lei nº 50/2018
Sem ambiguidade, a Lei nº 50/2018, de 16 de agosto, estabelece no seu artigo 1º que as transferências de competências que estão em causa se fazem em favor das “autarquias locais” e das “entidades intermunicipais”, que nesta altura são as comunidades intermunicipais existentes e as áreas metropolitanas (Lisboa e Porto) [artigo 42º].
Também se diz (artigo 3º) que a “transferência das competências tem caráter universal” e que essa transferência “se pode fazer de forma gradual até 1 de janeiro de 2021”, sendo que o processo de transferência é suposto iniciar-se já em 2019 (artigo 4º), estabelecendo-se um prazo (já ultrapassado) para que “as autarquias e comunidades intermunicipais que não pretendam a transferência das competências no ano de 2019” comuniquem essa decisão à Direção-Geral das Autarquias Locais (artigo 4º). O mesmo se estabelece para o ano de 2020. 
O artigo 5º refere-se ao “Financiamento das novas competências”, dando indicação de paralelismo entre competências transferidas e o acréscimo de recursos disponibilizar a favor das entidades que assumam as novas competências, se bem que “a natureza e forma de afetação dos respetivos recursos” sejam “concretizados através de diplomas legais de âmbito setorial” (artigo 4º), daí, gerando naturais hesitações e receios da parte das entidades a quem serão afetadas as novas competências e atribuições. Naturalmente, dado o carater muito recente e porventura algo precipitado no tempo de produção da Lei nº 50/2018, à presente data, quase nenhum desses diplomas reguladores foi ainda produzido. Se não estou em erro, acabou de ser publicado o primeiro desses diplomas: o que se refere à Educação.
As competências descentralizadas são extensas e exigentes, a maioria delas, indo da Educação, à Ação Social, Saúde, Proteção Civil, Cultura, Património, Habitação, Áreas Portuárias e áreas Urbanas de Desenvolvimento Turístico, Praias Marítimas e Fluviais, à Informação Cadastral, Transportes e Comunicações, Estruturas de Atendimento dos Cidadãos, Policiamento de Proximidade, Proteção e Saúde Animal, Segurança de Alimentos e Segurança Contra Incêndios, Estacionamento Público, Jogos de Fortuna e Azar.
É uma enorme revolução na organização do Estado o que está em jogo. Daí as perplexidades e as dúvidas que se têm vindo a levantar. De muito pouco descentralizado e desconcentrado, o país (refirmo-me à parte continental), descentraliza-se agora “tudo”, e “tudo” para instâncias administrativas da base, não se fazendo referência a instâncias intermédias, ainda que consagradas na Constituição da República.
Obviamente, aparte os recursos financeiros, em muitas destes domínios as entidades “beneficiárias” da descentralização não têm quaisquer competências técnicas, nem recursos humanos, embora em relação a estes se assuma também o princípio da respetiva transferência (artigo 8º) da administração central, igualmente dependente de diplomas legais de âmbito setorial. A Lei 50/2018, também assume que esse novo quadro de competências e obrigações obrigará à própria reorganização dos serviços das autarquias locais, bem como do estatuto do seu pessoal dirigente (artigo 8º).
Cabe aqui assinalar que a entidade sobre que incide o essencial do processo de descentralização que se pretende encetar é a autarquia local (Município), tendo as Comunidades Intermunicipais um papel subsidiário. Para estas, estão previstas competências nas áreas da Educação, Ação Social, Saúde, Proteção Civil, Justiça, Promoção Turística, Gestão de Portos e da Rede Hidrográfica, para além da  Gestão de Projetos Financiados com Fundos Europeus e Programas de Captação de  Investimento. Ainda assim, e consistentemente, a intervenção dessas entidades acontece em quadros supramunicipais ou de rede de serviços e equipamentos afetos aos territórios da jurisdição da comunidade intermunicipal.
Este papel secundário das comunidades intermunicipais, se se compreende em razão de não serem entidades com órgãos diretamente eleitos e, portanto, legitimados politicamente de forma direta, coloca problemas relevantes na sua eficácia e no papel de coordenação que deveriam assumir quando estão em causa a gestão de redes ou de equipamentos que exigem escalas de atuação supramunicipais para serem eficientes. Daí que se possa questionar se a lógica não resulta invertida, isto é, primeiro importaria equacionar a componente rede e estruturas supramunicipais e só depois a dotação e gestão à escala municipal.
Na ausência de estrutura intermédia, isto é, regional, percebe-se que seja atribuído às comunidades intermunicipais tal papel de coordenação, planeamento e gestão de recursos, embora, em muitos casos, essa escala resulte desadequada (sub-dimensionada) e, como sublinhado, falha de legitimidade política direta e, daí, dependente da capacidade de concertação interna dos municípios participantes. É melhor do que nada, obviamente.
O artigo 38º da Lei nº50/2018 estabelece as competências que são atribuídas às Freguesias e o artigo 39º as competências que podem ser transferidas ou delegadas pelos municípios. Dentro do princípio geral da subsidiariedade e na perspetiva da relação com o cidadão, não parece que se possam levantar grandes questões no que se refere a esta dimensão da Lei.


(Continua)

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