segunda-feira, novembro 19, 2018

“Descentralizar ou Transferir? Defender o Poder Local Democrático” (3ª parte)

(Continuação)

3.  Notícias de imprensa que informam sobre a reação dos municípios à implementação da Lei nº 50/2018
No período subsequente à aprovação da Lei da descentralização, os jornais foram dando notícia de variadas tomadas de posição dos municípios e de agentes políticos diversos sobre esta. Algumas das tomadas de posição surgiram no contexto formal e temporal estabelecido pela dita Lei no que se refere à vontade/disponibilidade para assumirem as competências a delegar já no ano de 2019.
Um exemplo disso foi o da Câmara Municipal de Cantanhede, que deliberou, por unanimidade, que no ano de 2019 não pretendia a transferência das competências previstas na lei. Como razões, invocou “a grande complexidade do processo e a falta de condições para a sua implementação” (notícia do jornal Campeão das Provincías, de 7 de novembro de 2018). A tomada de posição do executivo camarário, a referendar na Assembleia Municipal, aduzia as “repercussões […] imprevisíveis para as autarquias locais” da respetiva implementação, o que, em parte, pelo menos, se prendia com conhecerem-se “em detalhe os diplomas sectoriais de cada uma das áreas contempladas no processo de descentralização”.
Fazia-se, igualmente, menção ao facto de “não estar ainda constituída a comissão de acompanhamento da descentralização, com representantes dos grupos parlamentares, do Governo, da ANMP e da ANAFRE, cuja missão será avaliar a adequabilidade dos recursos financeiros de cada área de competências a transferir”. Adicionalmente, em menção expressa a algumas áreas, “a saúde e a educação“, “pela sua enorme relevância social”, sublinhava-se que era preciso “conhecer muito bem as implicações da transferência de competências” (notícia do jornal Campeão das Provincías, de 7 de novembro de 2018).
A invocação com algum detalhe desta tomada de posição sugere-se-me pertinente porque, por um lado, ela faz presente a complexidade do processo de reforma da organização do Estado que está em causa e, por outro, deixa patente que o alcance dessa reforma é devedora de diplomas regulamentares setoriais, que estavam por publicar na ocasião em que os municípios eram supostos fazer uma primeira tomada de posição sobre a implementação da lei; e, finalmente, denuncia alguma precipitação na aprovação da lei e definição de prazos de aplicação. Porque é que tal sucedeu deste modo, tratando-se de uma reforma com esta dimensão, escapa-me.
A dita invocação, do caso de Cantanhede, digo, justifica-se também porque, consultando as notícias sobre outras tomadas de posição, percebe-se que as questões de fundo são recorrentes e, portanto, não resultam, necessariamente, de disputas ou afirmações político/partidárias, o que não quer dizer que os termos ou as circunstâncias em que aconteceram não tenham essas dimensões presentes.
No mesmo sentido de adiar a assunção imediata das novas competências previstas na Lei n.º 50/2018, de 16 de Agosto, pronunciou-se a Assembleia Municipal de Loures, outro tanto tendo acontecido com Benavente, Cuba, Évora, Grândola, Montemor-o-Novo, Monforte, Mora, Moita, Palmela, Vidigueira, Santiago do Cacém, Alcácer do Sal, Alpiarça, Alvito, Arraiolos, Avis, Seixal, Sesimbra, Serpa, Setúbal, Silves, Sobral de Monte Agraço, Vila Viçosa, Espinho, Maia, Porto, Santa Maria da Feira, Vila do Conte e Beja, conforme foi divulgado em vários órgãos de informação. Esta listagem não pretende ser exaustiva. Suporta-se na informação noticiosa a que acedi no contexto da pesquisa efetuada. Na verdade, em termos formais, 31 municípios pronunciaram-se negativamente no que respeita à disponibilidade para assumirem já em 2019 as competências a delegar pela administração central.
Noutros casos, há notícias de tomadas de posição de forças políticas locais reclamando debates sérios sobre a matéria nas sedes próprias municipais, como foi o caso de Lagos e de Faro, por exemplo.
Como disse, o apanhado não pretende, de modo algum, ser exaustivo mas, tão só, sublinhar a controvérsia gerada em torno da Lei nº 50/2018, ou melhor, sobretudo da sua implementação a muito curto prazo e as consequências disso decorrentes. A esse propósito, foram muitos os interpelantes que fizeram questão de sublinhar que a sua tomada de posição não pretendia pôr em causa a defesa da descentralização mas, antes, visava alertar para a necessidade de se reunirem as condições mínimas para que o processo de transferência pudesse ser assumido de forma eficaz, transparente e responsável por todas as entidades envolvidas, ao invés de “um salto no escuro”. 

Nota final
Um processo com a complexidade e exigência deste suscitaria sempre controvérsia e preocupação, para além de espetativa e esperança pelo seu potencial contributo para a melhoria do serviço público prestado à população e de reforço da democraticidade do exercício do poder. Num tempo em que se fala tanto de reforma do Estado (ou, pelo menos, de reformas estruturais), esta é ou pode ser, de facto, uma reforma no sentido por excelência da expressão.
Mantendo embora isso presente, tenho dificuldade em entender a precipitação com que o processo foi conduzido, que vai desde o tempo e o modo de produção da Lei, ao calendário da sua implementação e ao seu desenho concreto, onde, manifestamente, falta a dimensão intermédia (a regionalização) e todo o acento fica colocado no nível municipal. Este, com sublinhei, tem falta de escala e, noutra dimensão, de competências para, de um ano para o outro, ser protagonista de um Estado descentralizado. Curioso é que o modelo de Estado descentralizado que se propõe seja descendente direto de um Estado altamente centralizado e concentrado.
Fazendo mea culpa, o próprio governo, na pessoa do Ministro da Administração Interna, admitiu em meados de agosto que iria ser dado mais tempo às autarquias para decidirem o grau de envolvimento que queriam assumir no ano de 2019 no âmbito do processo de descentralização (conforme notícia de ECO - Economia online, de 17 de agosto de 2018), mesmo porque os diplomas de âmbito setorial, que definirão, em concreto, o processo de transferência em causa para dar eficácia às decisões reclamadas dos municípios até 15 de setembro deste ano estariam por produzir.

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