Numa
conferência em que tive oportunidade de participar recentemente na Uberlândia,
Brasil, fui confrontado com a informação de que, de um modo geral, nas cidades
do Brasil são usadas tarifas únicas no transporte público rodoviário urbano
tendo, depois, tido oportunidade de vivenciar a situação no local. Quem tratou
esse assunto na dita conferência foi Geraldo Alves Souza, geógrafo e professor
da Universidade Federal de Manaus, que lhe atribui uma conotação bastante negativa.
No
dizer do académico que invoco, contra a
ideia comumente aceite de que “a adoção de um único valor de tarifa para o
transporte coletivo […] seria uma forma de promover a justiça social”, a partir
da invocação do caso da cidade de Manaus, no Amazonas, ele vê nessa política um
modo de, “ao mesmo tempo em que expressa o pouco esforço do poder público na gestão
e aprimoramento do sistema de transporte coletivo urbano”, uma forma do poder
político ir ao encontro do “interesse das elites políticas e econômicas deste
país para consolidar um padrão de distribuição espacial da população que relega
as pessoas de baixa renda à periferia das grandes cidades”. Cito, a propósito,
passagens do resumo de uma comunicação produzida sobre a matéria pelo autor identificado,
a que tive acesso mais tarde, gentilmente cedida pelo próprio [Souza, Geraldo Alves (2010), “Transporte Púbico a
Preço único: reforçando as Desigualdades Sociais”, Conferência PLURIS 2010,
Universidade do Algarve, Faro].
Em grandes linhas, a tese defendida por Geraldo Alves Souza é a seguinte: contrariamente à ideia comumente
aceite no Brasil de que a adoção de um valor único para a tarifa do transporte coletivo
urbano teria por finalidade promover a justiça social - porque, tradicionalmente, a periferia
tem sido ocupada pela população de baixo rendimento e tarifas diferenciadas de acordo
com a distância das viagens elevariam as despesas com transportes de uma população já
socialmente penalizada -, esta prática seria “uma forma ardilosa de levar a
população pobre para a periferia da cidade e, ao livrar-se dela, a sociedade burguesa
evita[ria] que os recursos destinados às classes média e alta sejam[fossem] divididos com
esta população. Esta medida permite[iria] também que glebas de terra de
excelente padrão e localização não sejam utilizadas para assentar essa
população, permanecendo à disposição do capital imobiliário para empreendimentos
de médio e alto padrões” (Souza, 2010, p. 2).
Adiantando argumentos, defende Geraldo Alves Souza (2010,
p. 2) que “o ato de estabelecer residências em locais
periféricos exerce forte impacto sobre a qualidade de vida dessa população,
conforme apontado por Oliveira (2006), para quem o espaço socialmente produzido condiciona as relações entre os homens
e, dependendo do lugar onde o indivíduo resida, trabalhe ou circule, esse homem
pode ser mais ou menos cidadão e pode estar mais ou menos submetido a condições
de violência. Assim, morar na periferia não representa apenas um tempo a
mais nas viagens diárias mas a redução das oportunidades de realizações
profissionais e pessoais”.
Em abono desta tese são produzidos argumentos
vários ao longo do todo o texto que invoco e, como mencionado, como estudo de
caso é tratada a situação da cidade de Manaus, uma urbe que apresentou um
acentuado crescimento populacional nas últimas décadas, à semelhança do que
ocorreu no restante país, e que se expandiu horizontalmente para norte “em um
ritmo bem acima do necessário para abrigar a sua população” (Souza, 2010, p. 7).
A propósito do que sucedeu com esta cidade, no
quadro da explicitação da problemática que versa e da tese que defende, acrescenta
que “Uma das consequências desta dispersão da população é o exagerado aumento
nas distâncias a serem vencidas pela população […] agravada pela escassez de
vias arteriais com boa capacidade para receber o fluxo de veículos e ser utilizadas
por linhas de ônibus. Em função disso, as linhas de ônibus são obrigadas a percorrer
trechos com lentidão e congestionamentos de trânsito, com viagens que chegam a ultrapassar
duas horas de duração em horários de picos” (Souza, 2010, p. 8).
A tese é interessante e a ilustração que dela
se faz vai buscar bons argumentos à situação atualmente vivida no Brasil, de um
modo geral, como pude perceber olhando a realidade de cidades como Uberlândia e
Joinville, e, particularmente, ao caso de Manaus, que o autor tomou para estudo
de caso. Pese isso, haverá que dizer que a realidade, olhada de fora do Brasil,
se configura mais complexa do que a considerada pelo autor cujo trabalho invoco
e nem todos os argumentos chamados à colação por Geraldo Alves Souza se configurarão
igualmente pertinentes ou terão invocação legítima.
Em
boa verdade, como fiz questão de lhe transmitir em breve comentário que lhe fiz
chegar entretanto por correio eletrónico, a problemática afigura-se-me mais complexa
do que aquilo que é por ele considerado, e não terá resposta única no Brasil e
na Europa, por exemplo. No caso concreto de Portugal e da Europa, em geral, é
sabido que a residência na periferia da cidade é escolhida muitas vezes por
grupos com maior poder económico, que anseiam aceder a mais espaço, casas
individualizadas e a ambientes mais tranquilos, suportados no transporte automóvel.
Pelo contrário, os centros das cidades resultam ocupados pelos estratos mais
pobres da população e, lamentavelmente, tendem a desagradar-se.
Por
outro lado, levantando muitos problemas existentes na gestão do espaço urbano e
do transporte em meio urbano, o texto de Geraldo Alves Souza, a meu ver, perde
foco e consistência por trazer para a reflexão demasiados tópicos, sendo que
alguns deles têm resposta autónoma da problemática do transporte público, como sejam
o desenho e expressão espacial da cidade, que “facilmente” pode ser regulada pelos
planos diretores e urbanísticos municipais, a especulação imobiliária, que também
pode encontrar sede de regulação no quadro dos referidos instrumentos de
planeamento municipal, entre outros, e a opção pela existência de um ou mais
centros de serviços, por exemplo. Acresce que em Portugal e na Europa o emprego
industrial está também crescentemente localizado na periferia urbana. Mais se pode dizer, não resultando daí
diminuída a importância do contributo de Geraldo
Alves Souza para o tratamento de uma tema de tão elevada sensibilidade social e
pertinência socioeconómica.
J. Cadima Ribeiro
Referência: Souza, Geraldo Alves (2010),
“Transporte Púbico a Preço único: Reforçando as Desigualdades Sociais”, Conferência
PLURIS 2010, Universidade do Algarve,
Faro.
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