sábado, abril 11, 2020

O CONJUNTO DA BARRAGEM DO PICOTE

O concelho de Miranda do Douro, situado em Trás-os-Montes e no Douro Superior, é um dos concelhos com menor densidade populacional do país,1 tendo como atividades económicas principais a agricultura, a pecuária, a carpintaria, o artesanato e a construção civil, o comércio e alguma indústria. É uma região desertificada e pobre, que deve procurar nos escassos recursos disponíveis oportunidades de gerar riqueza. Assim, à semelhança da maioria dos concelhos de Portugal, também o de Miranda do Douro possui recursos passíveis de serem explorados turisticamente, onde se destaca o seu património natural e etnográfico.  O presente artigo de opinião debruçar-se-á sobre um recurso cujo incontestável valor cultural e potencial turístico contrastam flagrantemente com o crescente descaso a que tem sido votado – o Conjunto da Barragem do Picote.
No período pós-Segunda Guerra Mundial, Portugal encontrava-se, em confronto com outros países europeus, num estado de considerável atraso tecnológico. Reconhecendo o papel crucial da industrialização na melhoria do nível de vida da população e dando continuidade à política de eletrificação do país, o I Plano de Fomento para os anos de 1953 a 1958 incluiu a construção de uma “Central no Douro”. Com esse objetivo, em 1953, é fundada a Hidro-Elétrica do Douro, S.A.R.L., posteriormente designada EDP, sendo-lhe concedida a exploração do aproveitamento da energia das águas do rio Douro e o encargo de terminar o estudo do “Douro Master Plan”, executado pela Knappen-Tippets-Abbet-McCarthy, em 1951, a pedido do Governo Português.
Assim, em 1953/54, os jovens arquitetos João Archer de Carvalho (1928), Manuel Nunes de Almeida (1924-2014) e Rogério Ramos (1927-1976), recém-formados na Escola Superior de Belas Artes do Porto, integrariam o corpo técnico da Hidroelétrica do Douro, elaborando os projetos das intervenções do Picote, Miranda do Douro e Bemposta.
A construção das Centrais Hidroelétricas do Douro Internacional constituiu uma solução estrategicamente ponderada, por meio da qual se procurava dar resposta à crescente pressão política para estimular o incremento industrial, contribuindo assim para atenuar o endémico atraso tecnológico português.
É neste enquadramento cronológico, social e económico que se assiste ao surgimento, na freguesia do Picote, de um conjunto homónimo, constituído pela barragem e pelas instalações técnicas a ela associadas, a área habitacional com centro comercial, assim como por uma escola, igreja, casa dos operários, casa dos engenheiros, pousada, piscina e campo de ténis – bairro do Barrocal do Douro. É neste território pobre e agreste que o projeto nasce e toma forma, fundindo-se “com a paisagem, com um admirável sentido de ligação à terra e às pessoas que dela fazem parte”.2 O conjunto da Barragem do Picote constitui-se, deste modo, como uma das obras cimeiras do Movimento Moderno em Portugal, tendo no bairro do Barrocal do Douro a materialização da ideia de “cidade industrial”, sendo este o único exemplo existente em território português. São quatro as obras do conjunto que, pela sua excelência, constituem um marco do Modernismo Nacional: a igreja, da autoria de Manuel Nunes de Almeida; as casas dos engenheiros e a pousada, de Rogério Ramos, e a piscina e campo de ténis, de João Archer de Carvalho.
         Não cabe aqui relatar as vicissitudes a que o local se encontrou sujeito, culminando no estado de abandono de parte dos equipamentos construtivos que o compõem. Urge dar novos usos a esses equipamentos, com o intuito de os valorizar e conservar. Um dos passos no sentido de conservar e valorizar o lugar foi já dado em 2011, com a classificação da Central Hidroelétrica do Picote como Conjunto de Interesse Público. Esperemos que outros se lhe sucedam, ainda que o percurso, cujos resultados não serão decerto visíveis a curto prazo, se adivinhe longo e pontuado de obstáculos diversos.
         Não cremos que o Turismo Rural se revele adequado àquele enquadramento, sob pena de se desvirtuar a leitura do conjunto. Contudo, não deve ser afastada a possibilidade de fomentar um turismo que retire vantagem, de forma harmoniosa e estrategicamente concertada, de uma aproximação às questões do Modernismo em Portugal e dos valores do lugar – em cujo âmbito se assumem especial destaque a cultura local, de tipo rural, a geografia, o clima, as espécies vegetais e animais e o próprio Homem. Estamos perante um lugar de memória, evocativo de uma fase de industrialização, levada a cabo num sítio remoto e pobre, mas que, inquestionavelmente, merece ser dado a conhecer.  O Conjunto da Barragem do Picote é um “museu a céu aberto” que usufrui de uma localização privilegiada, por se situar num dos mais belos segmentos do rio e pertencer ao Parque Natural do Douro Internacional.
Importa, em qualquer caso, não ignorar o risco real de um lugar desta natureza se revelar capaz de atrair apenas um público restrito, convertendo-se, deste modo, em destino turístico especializado para visitantes interessados em arquitetura moderna. Por forma a obviá-lo, devem ser estudadas estratégias de apresentação do lugar que valorizem o envolvimento da comunidade local e apostem na reutilização sustentável dos edifícios, com o objetivo de proporcionar a plena fruição cultural do sítio, tornando-o num complemento aos recursos existentes já explorados pelo concelho.
 
Bairro do Barrocal do Douro. Fotografias de Ricardo Gonçalves

Luís Filipe Marinho Leite
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1 - https://www.cm-mdouro.pt/uploads/writer_file/document/976/Diagn_stico_Social_2018_-_Atualiza__o_de_Dados.pdf , acedido a 02-04-2020
2    -    http://overdete.blogspot.com/2008/01/o-complexo-habitacional-de-picote-surge.html, acedido a 02-04-2020

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)

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