O turismo espacial representa uma das formas mais extravagantes da atividade, tanto
pelo seu custo, como pela sua própria natureza. Realisticamente, são muito
poucos os indivíduos que têm a oportunidade de realizar um voo orbital, tanto
como turistas quanto como funcionários de uma agência espacial. Aqueles que o
conseguem juntam-se a um pequeno leque de pessoas que não só puderam observar o
nosso planeta a partir de um invejável ponto de vantagem mas também serão
recordadas na história como as primeiras a iniciar a exploração humana do
cosmos. Ser um turista no espaço não representa só uma realização pessoal mas,
também, uma experiência inigualável.
Contexto Histórico
O voo orbital tripulado existe há pouco mais de 50 anos.
Antes de prosseguir, é necessário clarificar o que constitui um “voo espacial”.
Para a Fédération Aéronautique
Internationale, um voo que ultrapasse a linha de kárman constitui um voo espacial. A linha de kárman situa-se a cerca de 100 km de altitude, onde a densidade do
ar é tão baixa que, para as asas de um avião/nave gerarem sustentação
suficiente, este teria que voar a uma velocidade superior à necessária para
escapar à gravidade terrestre (velocidade orbital). Essencialmente, isto significa
que acima desta linha uma nave não necessita de asas para se manter numa órbita
estável.
Tecnicamente, um voo que ultrapasse esta linha pode ser
considerado um voo espacial, mesmo que este não possua a velocidade suficiente
para se manter numa órbita estável, e seja puxado outra vez para a terra antes
de concluir uma volta inteira ao planeta. Isto designa-se como um “voo
sub-orbital”, enquanto um voo que ultrapasse a linha de kárman e possua uma velocidade superior ou igual a 8km por segundo
(velocidade à qual uma nave escapa à força gravitacional terrestre, também
conhecida como velocidade orbital) é considerado um “voo orbital”.
A totalidade dos voos espaciais tripulados são voos que
chegam pelo menos a atingir uma órbita estável à volta de terra, mas os
primeiros engenhos a ultrapassarem os 100 km de altitude eram voos sub-orbitais
não tripulados (o primeiro destes voos foi curiosamente o míssil de cruzeiro
V-2, desenvolvido nos anos 40 na Alemanha, durante a guerra).
Nos anos 50, a tecnologia avançou rapidamente, e em 1957 a
URSS consegue colocar um satélite não tripulado em órbita terrestre (Sputnik
1). Semanas depois, o Sputnik 2 é colocado em órbita, com o equipamento de
suporte de vida para uma cadela chamada “Laika”. Em 1961, é colocado em órbita
o primeiro ser humano, Yuri Gagarin.
Durante a guerra fria, nos inícios dos anos 60, os EUA vão
acompanhando o progresso científico dos soviéticos, lançando os seus próprios
voos orbitais tripulados (os programas Mercury e Gemini). O primeiro rendez vous entre duas naves no espaço
dá-se em 1965, com duas naves do programa Gemini americano e, nos anos
seguinte, após outro rendez vous
feito com sucesso, duas naves atracam uma na outra, permitindo a troca de
tripulantes/equipamento entre ambas as naves. A mestria destas duas manobras (rendez vous e atracagem) é essencial
hoje em dia nos voos para a ISS. Em 1968, é realizado o primeiro fly-by tripulado à volta da lua, pela
missão Apollo 8 (colocando os EUA na frente da corrida espacial) e, no ano seguinte,
a missão Apollo 11 consegue fazer um fly-by
e aterrar um módulo tripulado na superfície lunar, regressando à terra com
todos os três tripulantes.
Inícios do Turismo Espacial
Depois do fim do programa Apollo e da corrida espacial, as
duas principais organizações governamentais dedicadas à exploração do espaço, a
NASA e a Agencia Federal Espacial (ex-URSS) passaram a dedicar-se não à
conquista de novos recordes mas à instauração das primeiras estações espaciais
para o desenvolvimento de investigação científica em ambientes de baixa
gravidade, e à tentativa de reduzir os custos das viagens espaciais. Os EUA
realizaram com sucesso o programa do Space
Shuttle, enquanto os soviéticos tentaram a sua própria versão, conhecida
como “Buran”, mas o programa foi desmantelado por falta de fundos, nos inícios
dos anos 90, antes de qualquer voo tripulado ter sido realizado.
Durante as missões de transporte realizadas pelos vaivéns
americanos, em várias missões, um dos membros da tripulação era um representante
da empresa que desenvolveu o equipamento que o vaivém era suposto colocar em
orbita. Esse membro da tripulação não tinha o mesmo nível de treino que era
exigido aos restantes astronautas da NASA, mas o propósito da sua viagem não
era necessariamente turístico, mas sim avaliar a implementação do equipamento
desenvolvido pela sua empresa. A viagem era também paga pela empresa, e não
pelo funcionário.
Nos anos 80, o governo soviético, assim como o americano,
apoiaram financeiramente o voo de civis, após estes terem recebido treino
básico para sobreviver no espaço. Os indivíduos que participaram nestes voos
foram os vencedores de concursos realizados pelo estado, e, apesar de terem as
viagens pagas, ainda tinham que desempenhar tarefas de cariz científico.
O primeiro voo totalmente pago pelo indivíduo que participou
nele foi realizado em 2001. Dennis Tito, num acordo com a Roscosmos (a atual
agencia espacial Russa), visitou a ISS a 28 de Abril, a bordo da Soyuz TM-32,
regressando 8 dias depois na Soyuz TM-31. A viagem custou-lhe aproximadamente
20 milhões de dólares. Do período de 2001 a 2010, a agência espacial russa
vendeu alguns voos a particulares até à ISS.
As cápsulas das naves Soyuz russas têm o equipamento
necessário para suportar 3 tripulantes e, durante as missões de substituição de
tripulação para a ISS, a Roscosmos viu uma oportunidade de negócio ao ceder um
dos lugares na cápsula e levar apenas 2 cosmonautas de uma vez. Seis turistas mais
visitaram a ISS abordo de naves Soyuz até 2010. Um deles, Charles Simonyi, fez
duas viagens. A última, realizada em 2009 por Guy Laliberté (o fundador do
Cirque du Soleil), custou aproximadamente 40 milhões de dólares.
A partir de 2010, a necessidade de ter mais tripulantes na
ISS inviabilizou a possibilidade de a agência espacial russa vender lugares nas
suas cápsulas espaciais (pois as novas tripulações iriam ocupar todos os 3
lugares). Em 2011, a Space Adventures
(a empresa que serve de intermediária entre o turista e a Roscosmos) anunciou
que seria possível retomar voos turísticos à ISS se mais naves Soyuz fossem
construídas. No entanto, isto não se materializou e, com o desmantelamento dos
vaivéns espaciais americanos em 2011, a pressão sobre as naves Soyuz aumentou.
Até hoje, estas constituem o único meio de colocar seres humanos no espaço,
pelo que mais nenhum turista visitou a ISS desde 2009, através de agências
governamentais.
Iniciativas Privadas
Com o sucesso das viagens turísticas abordo das naves Soyuz,
várias empresas privadas começaram a ver o potencial comercial das viagens
espaciais. Até agora, apenas grandes empresas, ou subsidiárias de grandes
empresas, demonstraram interesse neste mercado. Os elevados custos envolvidos
no processo de R&D, na construção do equipamento e no treino das equipagens/turistas,
implicam que só grandes multinacionais possam com sucesso trabalhar neste setor.
Até agora, nenhuma empresa privada colocou turistas acima da linha de kárman, mas empresas como a SpaceX (de
Elon Musk) já tiveram sucesso a transportar carga para a ISS e a realizar
experiências com lançadores espaciais recicláveis.
A Boeing, em cooperação com a Bigelow Airspace, está a
trabalhar no CST-100 Starliner, uma cápsula espacial compatível com vários
lançadores espaciais existentes, com capacidade para 2 tripulantes. É
semelhante à Orion (que está a ser desenvolvida pela Lockheed Martin para a
NASA), e funciona de maneira semelhante à nave Soyuz, mas está planeado que o
seu uso seja feito tanto pela NASA como por empresas privadas, como a Bigelow
Airspace, que planeiam construir estações espaciais privadas, destinadas a
servirem de hotéis para os turistas. A cápsula CST-100 tem o seu primeiro teste
não tripulado agendado para meados de 2018, e, se tiver sucesso, o seu voo
inaugural terá lugar em finais do mesmo ano.
A Space Adventures,
com o projeto Deep Space Expedition Alpha,
planeia atracar um foguete otimizado para operações no vácuo do espaço a uma
cápsula Soyuz modificada, e
fazer uma viagem de fly-by à lua, a
um custo de 150 milhões de dólares. No entanto, a empresa tem sido criticada
pelo facto de o foguete que eles planeiam usar para fazer a manobra de
translação de órbita terrestre para a órbita lunar não possuir a energia
suficiente. Apesar de um bilhete já ter sido vendido e a missão ter sido adiada
por duas vezes, a empresa permanece comprometida a realizá-la até ao final da
década. A Space X, de Elon Musk,
afirmou este ano a intenção de fazer uma viagem semelhante, possivelmente já no
final de 2018. Segundo o empresário, o projeto já conta com financiamento
substancial por parte de dois indivíduos.
Existe ainda a proposta de construir estações espaciais
destinadas exclusivamente a uso privado. Isto iria incluir a finalidade de
servirem de hotéis para eventuais turistas espaciais. A Bigelow Airspace e a
Space Island Group demonstraram interesse em tais projetos. A Bigelow Airspace
já construiu, com fundos próprios, dois veículos de teste, o Genesis I e o
Genesis II. Este último, lançado em 2007 num foguete do governo russo, sem
tripulação, permaneceu em órbita durante mais de dois anos, apesar de ter sido
desenhado para manter estabilidade durante apenas 6 meses. O objetivo do
programa, de testar a viabilidade de módulos habitacionais expansíveis, foi um
sucesso. O Genesis II, após atingir a órbita, autoinflacionou-se através de
sistemas de pressurização, aumentando o espaço disponível dentro da nave. A
mesma empresa colocou na ISS, em 2016, o BEAM (Bigelow Expandable Activity
Module), que, através de sistemas semelhantes aos do Genesis II, expandiu o espaço
disponível dentro da ISS após atracagem.
Um tipo de turismo espacial que envolve menos riscos, e
potencialmente menos custos, é o turismo sub-orbital. A ideia é realizar um voo
que ultrapasse os 100 km de altitude estipulados na linha de kárman como a linha que delimita o fim
da atmosfera e o início do espaço, sem ter que atingir a velocidade necessária
para chegar a uma órbita. Quanto menos velocidade for preciso, menos
combustível é necessário, e menor terá de ser a nave em si, reduzindo
consideravelmente os custos. Empresas como a Blue Origin e a Armadillo
Aerospace demonstraram interesse em explorar este conceito.
No entanto, empresas como a Virgin Galatic aproximaram-se da
ideia de voos sub-orbitais de uma perspetiva diferente. A sua nave, o SpaceShipTwo,
consiste numa espécie de híbrido entre nave e avião. Apesar de possuir asas
para ter sustentabilidade durante o retorno, o aparelho é propulsionado por um
foguete, à semelhança de uma cápsula espacial. Este é levado até uma altitude
de 15 km acoplado a um avião propulsionado por os mesmos motores encontrados
nos jatos comerciais. Após chegar a esta altitude, o SpaceShipTwo separa-se do
avião-mãe e inicia o seu foguete, que o leva acima da linha de kárman. Depois de acabar o combustível,
o foguete desliza de volta à terra.
Este aparelho foi baseado no SpaceShipOne, que bateu em 2004
o recorde de altitude para aviões sub-orbitais establecido pelo X-15 nos anos
60. Infelizmente, devido a um acidente em 2014, um dos SpaceShipTwo foi
perdido, resultando na morte de um dos pilotos. Até à data, 700 bilhetes para
este tipo de voos já foram comprados à Virgin Galatic, por 200 mil dólares
cada.
A ideia de turistas no espaço é, hoje em dia, algo que parece
longínquo. Apesar de já terem existido turistas abordo de naves do governo, o
turismo espacial só vai vingar como mercado se entidades particulares puderem
lucrar com o negócio. A procura deste tipo de produto, apesar de vir de um
número seleto de indivíduos, faz-se sentir no montante que estes estão dispostos
a pagar, tanto por viagens garantidas à Roscosmos, como por reservas em viagens
planeadas pela SpaceX e pela Virgin Galatic.
Apesar de algumas das ideias serem altamente questionáveis
quanto à sua capacidade de concretização a nível científico, as empresas que
estão a apostar neste setor têm perfeitamente noção dos riscos que correm. Na
minha opinião, não é só o lucro que lhes dá a motivação para continuarem o seu
trabalho. A vontade de quebrar barreiras, de trazer algo novo, de tornar o
espaço acessível a um número cada vez maior de pessoas, se concretizada, é
quase que uma recompensa em si própria. Vários voos de teste estão agendados
para os próximos anos. Só no futuro saberemos se este mercado será viável.
(Artigo de opinião produzido no âmbito da
unidade curricular “Economia do Turismo”, de opção, lecionada a alunos de
vários cursos de mestrado da EEG, a funcionar no 2º semestre do ano letivo
2016/2017)
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