Numa lógica de retoma conceitual, para dar continuidade a uma abordagem mais criativa da prática turística reforçada no (meu) anterior artigo de opinião, proponho-me agora materializar os diferentes domínios do turismo criativo no território. Na realidade, essa dimensão turística pode ser concretizada de diferentes formas, a partir de uma variedade de tipologias de eventos, como workshops, festivais ou visitas criativas, que estimulam a criatividade e o envolvimento ativo do visitante nas demais atividades. Quando um indivíduo se relaciona intrinsecamente com o território, a atividade adquire outro valor e transforma-se em experiência, enriquecedora do ponto de vista do desenvolvimento territorial, mas também promotora de momentos e sensações regeneradores física e psicologicamente.
Neste sentido, optei por
trazer a debate o processo de criação do festival de música e dança tradicional
Andanças e as implicações positivas e negativas da sua realização nos
diferentes lugares que lhe serviram de palco de atuação. O Andanças
surgiu em 1996 enquanto evento local, de dimensão reduzida e com participação
restrita, assente em quatro pilares de desenvolvimento fundamentais: Música e
Dança, Comunidade, Voluntariado e Sustentabilidade. O evento realizou-se
primeiramente no distrito de Évora, até 1999, ano em que se transferiu para a
vila de Carvalhais, pertencente ao concelho de São Pedro do Sul, tendo
assistido a um processo de transformação e a uma adesão crescente, com alcance
nacional e internacional.
Perante este cenário,
tornou-se inevitável a necessidade de criação de uma organização que
legitimasse o festival, para que se pudesse garantir a sua assiduidade anual e
a eficácia da aplicação dos seus valores estratégicos no contacto com o
território, a comunidade e os voluntários – isto porque a dinâmica de vida do
festival passa por uma ideologia ambientalista, consciente e participativa. Assim
nasce a PédeXumbo, em 1998, cuja missão passa por potenciar o
desenvolvimento de áreas rurais, através das suas raízes e saberes, para que se
torne possível considerar a reinvenção simbólica e económica do seu património.
A equipa responsável pela
organização, gestão e concretização do Andanças é inteiramente composta
por voluntários que caminham coletivamente para a reativação de memórias
tradicionais, práticas musicais e corporais partilhadas a partir de uma fórmula
natural e genuína entre gerações que merece ser valorizada e, sobretudo,
preservada – para que não se perca um conjunto de saberes culturalmente
enriquecedores, perante a inevitabilidade da renovação das gerações ou o
estagnar desse conhecimento nas pessoas mais velhas.
Contudo, é sempre preciso
ter em conta a viabilidade da realização do festival e as estratégias a
aplicar, numa lógica de sustentabilidade económica e minimização de impactes
negativos no território, staff, visitantes e comunidade local. Para
isso, várias são as medidas adotadas – desde a refeição km zero,
confecionada apenas com produtos regionais oriundos de campos vizinhos (à qual,
por um lado, estão associados produtos a um preço mais alto; mas que, por
outro, permite evitar custos de transporte enquanto fomenta a produção agrícola
local) até à recompensação do trabalho voluntário através do fornecimento de
entradas gratuitas para o festival e de senhas para refeições na cantina.
E porque o princípio basilar
desta experiência envolve Sustentabilidade, com vista ao desenvolvimento
local/regional e a todas as vantagens que esse ‘fenómeno’ traz, todas as ações
logísticas primam pelo respeito para com o meio ambiente, de uma forma
progressiva e continuada. A associação PédeXumbo luta anualmente para
promover um evento responsável e revivalista (não folclorista), que garanta a
continuidade da transmissão de práticas e valores ambientais aos seus
participantes, potenciando um envolvimento ativo de todos os (possíveis)
intervenientes no festival.
A própria designação Andanças
remete para ‘andar’, numa lógica de experiência coreográfica e circulação de
pessoas pelos diferentes palcos e oficinas; para além disso, a vontade da
organização passa também pela ‘deslocação geográfica’ do festival,
diversificando os seus venues e possibilitando a sua movimentação pelo
território nacional - tal como refere Joana Ricardo, produtora executiva, o
Andanças é onde ele está: onde as pessoas que fazem parte dele estão.
Por estas e outras
questões é que o Andanças pertence a uma tipologia de evento que deve
ser considerada nas agendas culturais e planos de ação municipal, com vista à
dinamização social e económica dos territórios, e consequente desenvolvimento
regional. As iniciativas culturais a realizar devem desenvolver-se numa
perspetiva socioeducativa, para que os agentes envolvidos se sintam integrados
e culturalmente enriquecidos. A capacidade de envolvimento da comunidade local
é essencial para o sucesso dos eventos criativos, através de parcerias com
entidades/associações de âmbito social, artístico ou cultural e setores de
produção local. Posto isto, deve caber às políticas públicas e autarquias
locais a capacidade de articular estratégias de modo criativo e potenciador
para dar resposta aos objetivos a que se propõe, tendo sempre em conta as
necessidades e limitações associadas ao território concreto.
Claro que nem sempre se
confirma a contribuição positiva de um festival para uma localidade e sua
população, mas a questão passa por aplicar medidas eficazes para a redução
desses impactes negativos. Neste sentido, o turismo criativo pode revelar-se
como fator de regeneração física e social dos territórios através da pedagogia
participativa e do contacto com práticas tradicionais. De facto, no Andanças,
a dança revela-se infindável e a diversidade musical dá espaço para a
interpretação: a palavra-chave é Inovação e não se pede menos do que mudar,
misturar, arriscar, porque nada é garantido e o melhor acaba por ser todo esse
processo de descoberta.
Filipa Rodrigues D. F. Santos
Referências Bibliográficas:
. Amorim, Daniela (2019): Turismo Cultural, Turismo
Criativo e Animação turística em eventos locais. Tese de Doutoramento,
Universidade de Sevilha. Disponível em: https://idus.us.es/bitstream/handle/11441/89795/Tese_DanielaAmorim_vers%c3%a3o%20finalissima_apos%20defesa_9out_2019.pdf?sequence=4&isAllowed=y
. Rodrigues, Maria Elisa (2014): O Andanças e as
‘Andanças’: um olhar antropológico sobre o espaço do festival. Tese de
Mestrado, Instituto Universitário de Lisboa. Disponível em: https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/9160/1/2014_ECSH_DA_Dissertacao_Maria%20Elisa%20Guarita%20Rodrigues.pdf
(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
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