O mundo indígena do imaginário popular é do ser humano nu, falante de uma língua ininteligível, reduzido a bens materiais que não ultrapassem sua “oca”, seu cocar, arco, flecha e alguma cestaria. Mesmo entre os mais simpáticos relativamente às causas indígenas, essa imagem comumente prevalece, por vezes ao lado da atribuição de caraterísticas como inocente, incapaz e, portanto, carente de “proteção” que é realizada através da tutela.
Esse construto é constantemente usado como critério
para medir, julgar e avaliar a identidade étnica dos indígenas. Qualquer pessoa
pertencente a um dos povos originários cuja caraterísticas não correspondam ao
perfil rascunhado acima corre o risco de ser visto como um ser “menos”
indígena. Expressões de incredulidade são facilmente produzidas: “Usa roupas…
não é mais índio”; “Olhe lá! Sabe dirigir, tem um carro e diz que é índio.”;
“Tem internet na aldeia, tem conta no Facebook/Instagram…
esse índio é muito moderno”.
Há, no Brasil, 305 povos indígenas e 274 línguas
indígenas que ainda são faladas, de acordo com o censo brasileiro de 2010. E,
de facto, existem indígenas que habitam a floresta, andam nus e subsistam dos
recursos ambientais disponíveis. Esta situação, contudo, não é a única
realidade desses povos. A compreensão das atuais formas de vida dos indígenas
brasileiros é fundamental para construção de políticas voltadas à salvaguarda
do património imaterial e para seu desenvolvimento económico, pois discursos
como os vistos acima, consequentemente, negam a colonização e a violência
sofridas (e a sofrer) por gerações de indígenas e invisibilizam as novas
configurações sociais advindas das primeiras.
Quando tratamos de património
imaterial, o discurso da perda cultural está muito presente, e isto não é
diferente em relação às línguas. Esse discurso é muito criticado pelos
cientistas sociais porque a mudança é inerente às culturas e é por meio das
mudanças que também garantimos a diversidade. Entender que as línguas, como
outros bens de valor intangível, se transformam é importante ao pensar no modo
de preservá-las. Em geral, salvaguardar, proteger, preservar línguas dos povos
minoritários refere-se a ações que tenham por objetivo tornar essas línguas
objetos de estudos científicos, documentar e inventariar. Ações importantes,
mas que têm em vista que essas línguas em breve serão do passado. Se tomarmos o
Brasil como exemplo, em que há uma numerosa
diversidade de línguas e uma população em sua maioria monolíngue em língua
portuguesa, podemos compreender esta preocupação com o “apagamento” cultural.
Todavia, os povos
indígenas estão vivos e são nossos contemporâneos. E eles têm buscado dominar
as ferramentas e estruturas do universo não indígena como estratégia para se
fortalecerem política, social e economicamente. Para isso, estão a cursar a
universidade, a se candidatarem a cargos eletivos (aumentando a participação e
número de indígenas eleitos a cada eleição), a assumirem diversos postos de
trabalhos no Brasil; possuem seus organismos de representação, fazem uso das
redes sociais, moram em seus territórios tradicionais como também estão a viver
nas cidades. E para conquistarem esses espaços, necessitam aprender o
português. As línguas originárias ainda são excluídas. Não estão nos livros das
escolas, não estão nos serviços públicos e este vazio das línguas na esfera
pública contribui para a imagem estereotipada que mencionamos no início.
Em 2010, com o
intuito de promover a diversidade linguística brasileira, foi criado o
Inventário Nacional da Diversidade Linguística, uma política de
patrimonialização de línguas faladas no Brasil, a fim de criar uma lista de
línguas que sejam referência cultural brasileira, semelhante às listas de
inventários de outros bens culturais brasileiros e às listas da Unesco. Porém,
patrimonializar uma língua não dá garantias de que ela continue a ser falada.
Como qualquer bem cultural, sabemos que uma língua, para se manter viva,
necessita continuar a ser retransmitida às novas gerações. Elas precisam estar
em todos os lugares da sociedade em que os povos que as falam transitam.
Se os governos ainda
não compreenderam a importância de valorizar as línguas, há empresas que
começam a perceber a importância da participação social ativa dos povos
indígenas e veem esse aí um mercado consumidor. No mês de março de 2021, uma
empresa multinacional de telecomunicações lançou no Brasil um aparelho com suporte
para duas línguas indígenas, Kaingang e Nheengatu. As línguas estão disponíveis
nos dispositivos Android produzidos por essa empresa. Entre os mais jovens, a
quem nos interessa que continuem a falar suas línguas, foi um avanço visto com
muito ânimo.
Estratégias de salvaguarda precisam ser pensadas como formas de garantir a continuidade do uso das línguas pelas novas gerações, considerando as estruturas socias atuais. E, nesse sentido, incorporar as línguas indígenas nas novas tecnologias é uma forma que agrega mais valor à língua do ponto de vista dos jovens do que os registos documentais guardados em arquivos. Espera-se que o Estado brasileiro possa também compreender que as línguas indígenas devem estar na esfera pública para garantir a cidadania como deve ser numa democracia.
Juliana Pereira dos Santos
(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
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