O alerta foi dado por um munícipe que prontamente comunicou à Câmara Municipal da Póvoa de Varzim a notícia de que tinha visto num site de vendas online da estilista americana Tory Burch uma camisola com caraterísticas semelhantes à camisola tradicional deste Município pelo valor de 695 dólares. Em Portugal, é vendida a 80 euros. Com este telefonema, “os sinos repicaram”, “os sinos dobraram”, “os sinos tocaram a rebate” na Póvoa de Varzim. Lembremo-nos, sempre, do célebre livro de Ernest Hemingway “Por Quem os Sinos Dobram”. E, já agora, “os sinos tocam a rebate” em situações de perigo, por exemplo, quando urge chamar os bombeiros ou avisar a população por causa de uma qualquer calamidade.
O sinal de alerta soou pelos corredores da Câmara Municipal
da Póvoa de Varzim, quando tiveram conhecimento da apropriação cultural da
camisola da Póvoa de Varzim, uma vez que a estilista Tory Burch escreveu no seu
site de vendas online que a fonte de inspiração era mexicana, para além do produto
estar disponível ao público oito vezes mais caro do que é praticado em
Portugal.
"Portugal vestiu a camisola", é o título do artigo
de opinião da Psicóloga Joana Amaral Dias publicado no dia 28 de março no
Diário de Notícias online,
referindo-se à camisola Poveira. Foi interessante observar a unanimidade das
reações que têm sido proferidas um pouco por todo o país, desde a política, ao
desporto, passando pela cultura e por diversos artigos jornalísticos na defesa deste
produto artesanal, desde esse dia. Segundo Joana Amaral Dias, a camisola
poveira tem mais de 150 anos e está, há meses, em processo de certificação.
Feita de lã branca da serra da Estrela e decorada a ponto de cruz a preto e
vermelho, com vários motivos de inspiração minhota - remos, boias, caranguejos
e até as armas da coroa -, é uma peça bem expressiva da nossa identidade, assim
começa o artigo desta Psicóloga/Politóloga.
A propósito da identidade, podemos referir a história
contada pelo Historiador José Mattoso e pelo escritor português Raúl Brandão. A
lenda conta-nos que um dia o rei D. Luís perguntou do seu iate a uns
pescadores, com quem se cruzou na costa, se eram portugueses; e a resposta foi
desconcertante e clara: “Nós outros? Não, meu Senhor! Nós somos da Póvoa do
Varzim!”. A resposta dá nota da complexidade do problema e que não temos
resposta concreta e concisa sobre o assunto. O serem portugueses não lhes pôde
ocorrer a estes pescadores, quando a pertença à comunidade próxima é que estava
presente. O sentimento de pertença afirma-se, assim, pela interpretação dos
elos culturais, antes até das considerações de fronteira ou de língua.
Para a escrita deste texto, fomos rever o escritor Raúl
Brandão, que nasceu na Foz do Douro, em 1867 (finais do século XIX), tendo
falecido em Lisboa, em 1930 (princípios do século XX), autor de várias obras
sobre as localidades por onde passou, devido à sua atividade profissional do
serviço militar, tendo escrito, entre outras obras, um livro notável sobre os
Açores - “As Ilhas Desconhecidas” - e “Os Pescadores”. Esta última obra
literária, como referiu o Professor Jean-Yves Durand na aula da UC Património Cultural e os Contextos, é um
conjunto de descrições das comunidades piscatórias portuguesas ao longo de todo
o litoral. Apesar de não ser uma obra etnográfica, uma vez que o autor não era
etnógrafo, mas sim escritor, a mesma tem um valor etnográfico certo. Numa das
passagens sobre a comunidade de pescadores da Póvoa de Varzim, Raul Brandão não
fala sobre a camisola aqui tratada, descrevendo numa das passagens da obra o
seguinte: “Reparo nos tipos: são feias e espessas, de pernas como trancas,
todas vestidas de escuro; velhas com uma saia pelas costas cheirando a fartum
de sardinha (…) homens de camisola e calça, secos e tão entranhados do salitre
como os pranchões das lanchas de madeira por pintar.”
Como o nosso tema é a “camisola poveira” e uma vez que a
comunidade portuguesa é unanime na sua defesa e proteção e os comunicados
tornados públicos por parte da Câmara Municipal da Póvoa de Varzim e o
Ministério da Cultura são expressivos do que está em causa, transcrevemos um
excerto do que escreveu a Ministra da Cultura Graça Fonseca, que nos dá o
enquadramento da defesa deste Património Cultural: “O Ministério da Cultura tomou a iniciativa
de solicitar a identificação das vias judiciais e extrajudiciais ao dispor do
Estado português para defender a camisola poveira enquanto património cultural
português. O Governo, tendo comunicado a sua intenção à Câmara Municipal da
Póvoa de Varzim, fará o que estiver ao seu alcance para que quem já reconheceu
publicamente o seu erro não se demita das suas responsabilidades e corrija a
injustiça cometida, compensando a comunidade poveira.”
A famosa camisola poveira, de lã branca, bordada a ponto de
cruz, com motivos marítimos, que as raparigas ofereciam aos namorados, é feita
artesanalmente por artesãs da Póvoa de Varzim, tendo como entidade promotora a
Câmara Municipal, poderá ser um ativo económico para as artesãs que executam
manualmente esta camisola e ao mesmo tempo um produto importante para a
promoção do concelho da Póvoa de Varzim. Defendemos, ainda, que o artesanato
não pode por isso ser olhado apenas como uma reserva ou herança do passado, e
menos ainda como uma recordação desse mesmo passado, mas antes como um ativo
que faz parte do presente e, acima de tudo, como um vetor de identidade que
deve ser transportado para o futuro como bandeira de identidade e de
diferenciação cultural no contexto cada vez mais globalizado em que vivemos.
De seguida, apresentaremos uma lista de produtos artesanais
tradicionais certificados em Portugal Continental até agora, segundo o site do CEARTE – Centro de Formação
Profissional para o Artesanato e Património: Bordado de Viana do Castelo;
Olaria e Figurado de Barcelos; Bordado de Guimarães; Renda de Bilros de Vila do
Conde; Bordado de Tibaldinho-Mangualde; Junça de Beselga-Penedono; Bordado de
Castelo Branco; Filigrana de Portugal – Gondomar e Póvoa de Lanhoso; Traje à
Vianesa - Viana do Castelo; Bonecos de Estremoz; Bordado de Crivo de São Miguel
da Carreira – Barcelos; Barro Preto de Olho Marinho - Vila Nova de Poiares;
Lenços de Namorados do Minho – Vila Verde; Viola Braguesa – Braga; e Viola
Beiroa – Castelo Branco.
Deste modo, somos apologistas de que a defesa e proteção da
“camisola poveira” poderá passar pelo
processo de Certificação dos Produtos Tradicionais, através do Sistema Nacional
de Qualificação e Certificação de Produções Artesanais Tradicionais, que é
regulado pelo Decreto-Lei n.º 121/2015, de 30 de junho, abrangendo as produções
não alimentares e tem como entidade responsável o Instituto do Emprego e
Formação Profissional (IEFP, IP), com o apoio do CEARTE, que assegura a
receção, avaliação documental e análise técnica dos processos relativos aos
pedidos de registo de produções a certificar.
Quanto à apropriação cultural a nível internacional de que
foi alvo a “camisola Poveira”,
concordamos com Vera Albino (coordenadora jurídica na Inventa Internacional e especialista na
defesa e infração de direitos de Propriedade Intelectual), quando diz que só há
duas formas de obter essa proteção internacional: "denunciar o
sucedido", como fez a autarquia da Póvoa de Varzim e o próprio Governo
português, ou a "classificação destas manifestações da cultura popular no
Inventário Nacional do Património Cultural Imaterial de Portugal e,
posteriormente, na UNESCO" (no qual já constam o Fado e a Dieta
Mediterrânica, por exemplo).
Francisco Freitas
Bibliografia
https://www.jn.pt/local/noticias/porto/povoa-de-varzim/agora-toda-a-gente-quer-uma-camisola-poveira--13545395.html
(08-04-2021)
https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/a-camisola-poveira-chega-ao-mundo-desde-o-seu-local-de-origem-em-15-dias-foram-feitos-mais-de-300-pedidos
(08-04-2021)
https://www.publico.pt/2021/03/27/local/reportagem/tory-burch-acordou-poveiros-real-valor-camisola-1956225~
https://www.dn.pt/opiniao/portugal-vestiu-a-camisola-13508263.html
28-03-2021
https://www.culturaportugal.gov.pt/pt/saber/2021/03/camisola-poveira-ministerio-da-cultura/
https://www.noticiasaominuto.com/cultura/1725669/camisola-poveira-por-que-e-tao-dificil-proteger-uma-producao-artesanal
https://ominho.pt/estilista-que-copiou-camisola-tradicional-da-povoa-de-varzim-pede-desculpa/ (25-03-2021)
https://www.povoabeirizargivai.pt/index.php/etnografia
https://www.cearte.pt/gpaos/index.html
Brandão, Raúl (1988) Os Pescadores. Introd. Isabel Pascoal.
- 2. ª ed. - Lisboa : Ulisseia, (Biblioteca Ulisseia de autores portugueses ;
10)
Decreto-Lei n.º 121/2015, de 30 de junho
(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
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