No meio do período de recesso da páscoa, fui surpreendida com uma matéria de jornal anunciando o translado de 22 múmias de reis e raínhas do Antigo Egito para o Museu Nacional da Civilização Egípcia.
O que deveria ser uma simples transferência foi
transformado em um grande evento pelo governo egípcio, com show de luzes, trilha sonora executada por orquestra, centenas de
figurantes a rigor e carruagens que lembravam barcos fúnebres, cada uma com o
nome do rei/rainha que estava transportando. Ao chegarem no Museu Nacional da
Civilização Egípcia, o cortejo foi recebido pelo presidente Abdel Fattah al-Sissi,
pelo primeiro-ministro Mostafa Madbouli, e pela diretora-geral da UNESCO,
Audrey Azoulay, sob disparos de canhão. O evento foi transmitido em direto pela
TV Egípcia, atraindo a atenção de boa parte do mundo, com matérias em jornais e
revistas, vídeos no YouTube e
postagens nas redes sociais.
A grandiosidade do evento me fez refletir sobre as
relações que se estabelecem entre o património cultural e o turismo para o
desenvolvimento económico local, uma vez que a relação entre esses campos,
mesmo sujeita a críticas, está muito vinculada à realidade de um grande número
de países. Atualmente, é reconhecida a importância do turismo para a defesa e
dinamização do património cultural, ocorrendo que muitas vezes a ativação
patrimonial se faz com base na atividade turística. No caso do Egito, o uso das
pirâmides como produto turístico está presente desde o século XIX, quando o
agente de viagens britânico Thomas Cook começou a organizar excursões.
Entretanto, o crescimento constante do setor foi
interrompido nos anos de 2010, quando ocorreram as manifestações da Primavera Árabe,
a instabilidade política e os atentados terroristas. De acordo com noticiário da
Euronews, após esses eventos o setor
turístico sofreu uma queda drástica. Se em 2010 o número de turistas era de 147
milhões de pessoas, gerando emprego para 12% da população e representando 10%
do PIB do país, em 2012 o número de turistas caiu para aproximadamente 11
milhões, levando a uma crise sem precedentes. A isso ainda temos que
acrescentar as perdas geradas a partir de 2020 com a pandemia, quando houve uma
redução superior a 69% nas receitas turísticas egípcias, conforme o site publituris.pt. Em janeiro de 2021,
de acordo com matéria da TV Cultura, a ocupação dos hotéis em Luxor não chegou
a 10%.
A sucessão de eventos desfavoráveis para o
desenvolvimento turístico do país acabou por desencadear uma ação do governo.
Destino turístico com um grande número de sítios considerados Património
Mundial pela UNESCO, o setor acaba por dinamizar a economia local, movimentando
uma grande soma monetária e envolvendo agentes de vários setores (transporte,
hotelaria, restauração, animação cultural, etc.). Nesses termos, o governo
assume um papel importante, reforçando o vínculo entre património e turismo ao
promover novas escavações arqueológicas na região, construir novos museus,
criar novos roteiros de visitação e reestruturar os equipamentos culturais
existentes, estabelecendo, inclusive, um planeamento das ações que tem como
meta desenvolver o turismo cultural no Vale do Nilo.
Mesmo que a covid-19 tenha atrapalhado os planos de
recuperação do setor, o nome do Egito não deixou de ser veiculado nas mídias
sociais ao longo de 2020, com as descobertas arqueológicas na necrópole de
Saqquara, que resultaram em um documentário na Netflix (Os Segredos de Saqquara) e na apresentação pública das múmias
encontradas nas escavações (incluindo a abertura de um sarcófago com 2.500
anos). Além disso, tivemos o já referido cortejo das múmias, que culminou com a
inauguração do novo museu e, logo na semana seguinte, o anúncio da descoberta
de uma cidade perdida que foi construída durante o reinado de Amenhotep III, há
mais de 3.400 anos.
Mesmo o Egito estando localizado em uma zona geopolítica conturbada e insegura, o governo vem investindo em iniciativas para incrementar o turismo cultural, incentivando propostas que promovam o desenvolvimento do setor, com vistas a alavancar a economia do país e gerar empregos para uma parcela significativa da população. Embora o presidente Abdel Fattah al-Sisi, em seu discurso no momento do cortejo, tenha afirmado que “o passado não pode ser esquecido ou desvalorizado”, temos que ter em mente que a excessiva valorização económica do património pode levar a uma visão do mesmo como entretenimento, e a desconfigurar e prejudicar a sua legitimação perante a sociedade.
Ana Carolina Viana
Guimarães
Bibliografia:
https://istoe.com.br/o-desfile-dos-faraos/
Vídeos:
TV
Cultura:
https://www.youtube.com/watch?v=MThDbhg5L6w
Euronews:
https://www.youtube.com/watch?v=vRrEMmZc1JA
(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
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