segunda-feira, abril 13, 2020

Arouca: mais de 500 milhões de anos de história

Situado no interior norte do distrito de Aveiro, caraterizado pela ruralidade, Arouca era até há não muito tempo um território afamado por um mosteiro edificado durante o século X, mas ignorado na consciência nacional. Em 2009, o panorama inverteu-se: da ignorância nacional, Arouca passou para a ribalta do património mundial. A aposta numa estratégia de desenvolvimento sustentado no património geológico revelou-se uma vantagem competitiva para a região. Foi, precisamente, o valor da história que as rochas protegem, tantas vezes negligenciado, e a importância da ciência nas decisões políticas que suscitou o tema para o desenvolvimento do presente artigo.
Pode dizer-se que a história começou há cerca de 100 anos, com o Sr. Joaquim Valério, um homem simples mas muito curioso, que dizia ter voltado do serviço militar em Angola uma pessoa mais instruída. Os fósseis não lhe passaram despercebidos.
Durante o seu trabalho na pedreira de Canelas, a lascar a pedra de ardósia, o Sr. Joaquim encontrava frequentemente rochas com relevo de figuras de animais. Com muito carinho, ia guardando os exemplares que lhe pareciam mais bonitos. Sempre que recebia uma visita na pedreira, ele exibia a sua coleção como se de algo sobrenatural se tratasse; algo bíblico. Ele acreditava que aqueles animais eram vestígios do dilúvio (episódio bíblico da Arca de Noé). Ainda que sendo um homem sem conhecimentos científicos, o Sr. Joaquim compreendeu que aquelas eram figuras de animais marinhos e socorreu-se das suas referências para explicar o fenómeno. Parece pertinente.
Foi nos anos 50, através do professor Décio Tadeu, que a comunidade científica teve conhecimento do gigantismo dos fósseis de Canelas. Aquando de uma visita do professor à pedreira, o Sr. Joaquim ofereceu-lhe os fósseis que tinha reservado num cantinho privilegiado. Foi neste encontro com o professor que o Sr. Joaquim compreendeu que aqueles eram fósseis de trilobites. Atualmente, estes fósseis encontram-se no Instituto Superior Técnico, em Lisboa.
As trilobites foram animais marinhos que habitaram os mares durante 300 milhões de anos e que evoluíram no decorrer da era do Paleozóico, entre os períodos Câmbrico e Pérmico, ou seja, foram das primeiras formas complexas de vida que surgiram no planeta há mais de 500 milhões de anos, numa altura em que a configuração dos mares e dos continentes diferia em larga escala da configuração da atual.
É fácil encontrar fósseis de trilobites em todas as regiões do planeta mas, geralmente, são de pequenas dimensões, até 10 cm. Canelas é um dos raros sítios do mundo onde é frequente encontrar trilobites com dimensões superiores a 50 cm, algumas chegam até aos 90 cm, o que confere a este território um valor especial.
Trilobites não são os únicos fósseis que afloram na região, é igualmente frequente o achado de fósseis de gastrópodes, cefalópodes, braquiópodes, bivalves, fósseis vegetais, entre outros.
Na inspiração do trabalho do seu avô, Manuel Valério deu continuidade à pedreira, sempre no intuito de preservar os fósseis que fosse encontrando e de dar a conhecer ao mundo esse valioso património. Em 2006, com a ajuda de geólogos e paleontólogos, Manuel Valério criou o Museu das Trilobites - Centro de Interpretação Geológica de Canelas.
Os achados fósseis da família Valério foram os responsáveis pelo despertar da curiosidade científica naquele território. Entretanto, várias formações geológicas de relevante interesse foram descobertas na região de Arouca. São exemplo disso as Pedras Parideiras ou as Pedras Boroas. Em 2005, é bem recebida pela autarquia a ideia levantada pelo paleontólogo Artur Abreu Sá da criação de um geoparque no município de Arouca. 41 geosítios foram referenciados e vários outros requisitos foram cumpridos. No Dia da Terra, a 22 de abril de 2009, é anunciado a integração do Arouca Geopark na Rede Europeia de Geoparques. O tamanho das trilobites encontradas em Canelas constituiu um fortíssimo argumento que conduziu a esta realidade. Atualmente, o Arouca Geopark está classificado como Geoparque Mundial da UNESCO.
Depois desta classificação, muito mais haveria para dizer sobre Arouca, desde o prestígio nacional e internacional que o território alcançou e todo o desenvolvimento turístico, económico e social que daí adveio, os vários galardões obtidos, as centenas de pessoas que todos os dias percorrem os Passadiços do Paiva ou a maior ponte suspensa do mundo, que será inaugurada ainda este ano, o que seguramente fará as delícias dos mais audazes (fica a sugestão para consulta do sítio http://aroucageopark.pt). Portanto, em torno do património geológico criou-se e valorizou-se todo um património cultural que faz de Arouca um exemplo de boas-práticas, reconhecido pelas mais prestigiadas entidades.
E porque a humanidade só conserva aquilo que valoriza, retém-se a história de um homem simples que desde cedo compreendeu a importância de conservar um património produzido pela natureza e perpetuado na pedra, que veio a revelar-se uma aposta estratégica no desenvolvimento e na valorização do território.

Eliana Veiga


Fig. 1: Fóssil de trilobite “gigante”











Referências

Arouca Geopark. (s.d.). Obtido de http://www.aroucageopark.pt.
Museu das Trilobites - Centro de Interpretação Geológica de Canelas. (s.d.). Obtido de https://museudastrilobites.pt.

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)

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