quarta-feira, março 03, 2021

Desconfinamentos e patrimónios

A breve reflexão que vos trago refere-se à pandemia provocada pelo CoronaVírus e as suas consequências naquilo que é, e será no futuro próximo, a vivência dos espaços e dos tempos festivos nas nossas comunidades, principalmente quando vamos a caminho da época de veraneio, da libertação dos espartilhos de Inverno e de todas as manifestações populares e de rua. Falo da habitual transfiguração paisagística e demográfica verificáveis por todo o território nacional, com especial significado nas regiões do interior, assim como no Sul do país.

Quando assinalamos um ano desde o início da pandemia, sabemos, porque o experimentamos, que durante estes confinamentos estamos impedidos de frequentar espaços e lugares públicos, até porque os equipamentos e infra-estruturas de fruição colectiva estão encerrados, e de qualquer manifestação pública que implique a reunião de pessoas, quando for possível desconfinar, tal como aconteceu no início do Verão de 2020, esses constrangimentos certos e impostos, rapidamente darão lugar a uma sensação de grande incerteza, insegurança e dúvidas sobre o nosso futuro colectivo, e sobre o que poderemos fazer e como nos deveremos comportar. Experimentaremos, uma vez mais, uma espécie de limbo social, entre a desconfiança, o medo e a vontade de reiniciar aquilo que interrompemos em meados de Março de 2020. Ainda que com uma percentagem de população vacinada, a minha percepção é de que iremos viver numa espécie de laboratório epidemiológico para a normalização das relações sociais, pautado pela clássica lógica da tentativa/erro.

Mas recentremos a nossa atenção naquilo que me trouxe aqui. Como iremos agir ou reagir perante as mais que prováveis impossibilidades durante o solstício de Verão? O que faremos com as diásporas que poderão regressar às suas comunidades de origem durante o mês de Agosto? Como se acomodarão todas as festas, rituais, romarias, encontros e festivais? Haverá perdas patrimoniais ou quebras de “tradição”? E aqui, tradição, não enquanto entidade cristalizadora de realidades, personagens ou lugares, mas sim enquanto entidade dinâmica, sujeita às cambiantes evolutivas, receptiva à incorporação da “novidade” e sempre representativa das vontades e das tendências dos indivíduos e comunidades que lhes dão corpo e razão de ser.

Procurando dar resposta as estas questões e outras relacionadas, considero importante começar por referir a importância do património cultural, nas suas manifestações materiais e intangíveis, para a identidade, para a alteridade, para os sentimentos de pertença, assim como para a memória, para a estruturação, dinamização e permanência no espaço e tempo.

É que a pandemia não nos retirou apenas as dinâmicas do turismo globalizado, como nos arredou de qualquer possibilidade social e quebrou as lógicas e narrativas do desenvolvimento local e regional. A minha preocupação é tentar perceber como poderemos recuperar e qual poderá ser o contributo das imaterialidades nessa recuperação. Para além de todos os turismos possíveis em todas as regiões do nosso território – desportivo, gastronómico, de natureza e aventura, histórico e de património, etnográfico e religioso - importa saber como ocupar os emigrantes e demais pendulares que ciclicamente nos visitam, se não puderem reunir, celebrar e festejar. Mesmo os rituais, as cerimónias, as romarias, novenas e festas populares sobreviverão sem a presença física das gentes que lhes dão corpo? Conseguirão reinventar-se? O movimento associativo - confrarias, grupos etnográficos e recreativos - sem possibilidade de reunião, actuação e representação, esvazia-se da sua essência ou ontologia. Os jogos tradicionais que não serão praticados - o fito, a sueca, a petanca, os paus, o futebol e outros que tais - estarão em risco de extinção?

O CoronaVírus e a pandemia interromperam abruptamente o calendário anual das festividades, sejam as religiosas, sejam as seculares/profanas, afastaram-nos do espaço público onde essas festividades normalmente ocorrem e, por consequência, dos comportamentos característicos desses ambientes: a liberdade, ou melhor, o contacto físico, o improviso e a espontaneidade, os excessos (de consumos e comportamentais) e até os comportamentos desviantes. Assistimos, igualmente, a uma regularização e regulamentação dos processos festivos e à obrigatoriedade da gestão de silêncios, tarefas que serão da inteira responsabilidade das entidades promotoras de tais eventos. Não são, nem nunca serão, decisões simples e anódinas, pelas implicações na vida dos indivíduos e no pulsar das suas comunidades.

Desconfio que neste hiato será preferível dar descanso à nossa herança cultural e aos nossos patrimónios, esperando que possamos repensar como fazer “acontecer”, ou “a festa” neste contexto e, depois, mais cedo que tarde, regressar àquilo que nos ensinaram, àquilo que gostamos e àquilo que queremos manter.

 

Luís Vale

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)

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