A breve reflexão que vos trago refere-se à pandemia
provocada pelo CoronaVírus e as suas consequências naquilo que é, e será no
futuro próximo, a vivência dos espaços e dos tempos festivos nas nossas
comunidades, principalmente quando vamos a caminho da época de veraneio, da
libertação dos espartilhos de Inverno e de todas as manifestações populares e
de rua. Falo da habitual transfiguração paisagística e demográfica
verificáveis por todo o território nacional, com especial significado nas regiões
do interior, assim como no Sul do país.
Quando assinalamos um ano desde o início da pandemia,
sabemos, porque o experimentamos, que durante estes confinamentos estamos
impedidos de frequentar espaços e lugares públicos, até porque os
equipamentos e infra-estruturas de fruição colectiva estão encerrados, e de
qualquer manifestação pública que implique a reunião de pessoas, quando for
possível desconfinar, tal como aconteceu no início do Verão de 2020, esses
constrangimentos certos e impostos, rapidamente darão lugar a uma sensação de
grande incerteza, insegurança e dúvidas sobre o nosso futuro colectivo, e
sobre o que poderemos fazer e como nos deveremos comportar. Experimentaremos,
uma vez mais, uma espécie de limbo social, entre a desconfiança, o medo e a
vontade de reiniciar aquilo que interrompemos em meados de Março de 2020.
Ainda que com uma percentagem de população vacinada, a minha percepção é de
que iremos viver numa espécie de laboratório epidemiológico para a
normalização das relações sociais, pautado pela clássica lógica da
tentativa/erro.
Mas recentremos a nossa atenção naquilo que me trouxe aqui.
Como iremos agir ou reagir perante as mais que prováveis impossibilidades
durante o solstício de Verão? O que faremos com as diásporas que poderão
regressar às suas comunidades de origem durante o mês de Agosto? Como se
acomodarão todas as festas, rituais, romarias, encontros e festivais? Haverá
perdas patrimoniais ou quebras de “tradição”? E aqui, tradição, não
enquanto entidade cristalizadora de realidades, personagens ou lugares, mas sim
enquanto entidade dinâmica, sujeita às cambiantes evolutivas, receptiva à
incorporação da “novidade” e sempre representativa das vontades e das
tendências dos indivíduos e comunidades que lhes dão corpo e razão de ser.
Procurando dar resposta as estas questões e outras
relacionadas, considero importante começar por referir a importância do
património cultural, nas suas manifestações materiais e intangíveis, para a
identidade, para a alteridade, para os sentimentos de pertença, assim como
para a memória, para a estruturação, dinamização e permanência no espaço
e tempo.
É que a pandemia não nos retirou apenas as dinâmicas do
turismo globalizado, como nos arredou de qualquer possibilidade social e
quebrou as lógicas e narrativas do desenvolvimento local e regional. A minha
preocupação é tentar perceber como poderemos recuperar e qual poderá ser o
contributo das imaterialidades nessa recuperação. Para além de todos os
turismos possíveis em todas as regiões do nosso território – desportivo, gastronómico,
de natureza e aventura, histórico e de património, etnográfico e religioso -
importa saber como ocupar os emigrantes e demais pendulares que ciclicamente
nos visitam, se não puderem reunir, celebrar e festejar. Mesmo os rituais, as
cerimónias, as romarias, novenas e festas populares sobreviverão sem a
presença física das gentes que lhes dão corpo? Conseguirão reinventar-se? O
movimento associativo - confrarias, grupos etnográficos e recreativos - sem
possibilidade de reunião, actuação e representação, esvazia-se da sua
essência ou ontologia. Os jogos tradicionais que não serão praticados - o
fito, a sueca, a petanca, os paus, o futebol e outros que tais - estarão em
risco de extinção?
O CoronaVírus e a pandemia interromperam abruptamente o
calendário anual das festividades, sejam as religiosas, sejam as
seculares/profanas, afastaram-nos do espaço público onde essas festividades
normalmente ocorrem e, por consequência, dos comportamentos característicos
desses ambientes: a liberdade, ou melhor, o contacto físico, o improviso e a
espontaneidade, os excessos (de consumos e comportamentais) e até os
comportamentos desviantes. Assistimos, igualmente, a uma regularização e
regulamentação dos processos festivos e à obrigatoriedade da gestão de
silêncios, tarefas que serão da inteira responsabilidade das entidades
promotoras de tais eventos. Não são, nem nunca serão, decisões simples e
anódinas, pelas implicações na vida dos indivíduos e no pulsar das suas
comunidades.
Desconfio que neste hiato será preferível dar descanso à
nossa herança cultural e aos nossos patrimónios, esperando que possamos
repensar como fazer “acontecer”, ou “a festa” neste contexto e, depois, mais
cedo que tarde, regressar àquilo que nos ensinaram, àquilo que gostamos e
àquilo que queremos manter.
Luís Vale
(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
Sem comentários:
Enviar um comentário