No Brasil, a ideia de fazer “produtivos” os territórios dos povos originários sempre perspassou as políticas públicas e as iniciativas nacionais ou internacionais de exploração econômica. Foi com essa perspetiva que nas décadas de 50, 60 e 70 do século passado houve a política de arrendamento de terras indígenas para a produção agropecuária. Estes territórios tornaram-se espaços para o cultivo de monoculturas, como a soja, arroz e algodão, e para criação de gado. Outra justificativa usada para promover estes arrendamentos foi a possibilidade de gerar renda para os povos indígenas.
Conhecemos o resultado dessa empreitada económica que
mudou por completo as caraterísticas ambientas e os aspetos culturais das
comunidades “beneficiadas”. O capital gerado por estas atividades nos
territórios arrendados nunca chegou às contas bancárias dessas comunidades,
restando para elas apenas o espólio dos danos ambientais e socias.
O argumento de tornar produtivos os territórios indígenas
e gerar renda através do seu potencial económico volta à cena no início deste
século. A alternativa comercial agora é o modo de vida dos indígenas por meio
do turismo. Não é difícil encontrar a venda de pacotes para visitação de
aldeias que podem conter todo o tipo de oferta, desde o gozo das belezas
naturais “escondidas” à participação em danças e rituais tradicionais com
práticas de cura xamânicas.
O interesse pela cultura dos povos indígenas não é uma
novidade. Os museus se dedicaram à coleta, guarda, curadoria e exposição de
artefactos produzidos no seio dessas comunidades. Em muitos casos sobressai, na
narrativa museológica, o discurso acerca destes povos como habitantes de um
passado longínquo. De certa forma, é esse ser com seu modo de vida “primitivo”
que o turista quer encontrar na sua viagem. Desconhecendo ou ignorando os
processos históricos e os processos sociais desses povos como habitantes do hoje,
essa expectativa é quase sempre frustrada ou suprida com alguma performance que atenda aos desejos do
visitante.
A diferença principal entre a turistificação dos
territórios indígenas hoje e os arrendamentos do séc. XX é que o último foi
sobretudo uma medida compulsória com objetivos integralistas, enquanto a
primeira é do interesse de algumas comunidades e já é praticada nas cinco
regiões. Para atender essa demanda das comunidades que já turistificaram seus
territórios e outras que têm interesse em iniciar as visitações, a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) publicou a Instrução Normativa 03, de 11 de junho de
2015[1], que estabelece
normas e diretrizes relativas às atividades de visitação para etnoturismo e
ecoturismo.
Ainda que regulamentada a atividade turística em
territórios indígenas, o turismo informal é imperativo. Entre as razões para
manutenção da informalidade está a dificuldade das comunidades atenderem às
exigências da Instrução Normativa 03, como a apresentação de um plano e
relatórios de visitação, por falta de capacitação; outra razão é que a
regulamentação se restringe a permitir ou vedar a atividade proposta por
determinada comunidade, e não há um trabalho de fiscalização sobre estas
atividades. Ainda há a exploração de aldeias indígenas mais vulneráveis que
aceitam a visitação turística, geralmente proposta por um guia local que mantém
com a comunidade uma “boa” relação, em troca de alimentos, roupas usadas e até
bebidas alcoólicas. Nestas situações, o guia ou superior (podendo ser uma
agência de turismo local) recebem os pagamentos dos visitantes.
O escambo propagado pela informalidade mostra o quão
danosa pode ser a visitação nos territórios indígenas. Mas o objetivo aqui não é
demonizar o turismo nestes territórios. Em primeiro lugar, é perceber o quão
complexa esta atividade pode ser e apontar que não basta apenas legislar sobre
o tema para a tornar realizável. É preciso dar condições às comunidades
interessadas para desenvolverem a atividade de forma segura e autônoma.
O arrendamento das terras indígenas foi uma atividade com
investimento público, aplicada de forma compulsória e com intenções muito
claras de prejuízo das comunidades. Doutra feita, o turismo teria a
possibilidade de ser uma atividade de facto proveitosa para as comunidades.
Afinal, é necessário conhecer para respeitar e o turismo tem um potencial educativo,
com a possibilidade de promover uma experiência real das condições de vida da
aldeia visitada e dos processos históricos vivenciados por aquele povo que
recebe o turista.
Considerando os preceitos da Nova Museologia, cuja ideia
de museu ganha outra dimensão e todo território é em si um museu, a atividade
turística pode ser uma estratégia de preservação, resgate e promoção da
valorização destes povos pelo não indígena, contanto que seja exercida sem
folclorizar, sem esteriotipar, sem performar um indígena idealizado e, desta
maneira, promova o entendimento de que a cultura de um povo é um património
imaterial suscetível às mudanças que ocorrem no tempo e nas relações de poder
que as desencadeiam. Essa compreensão, em geral, fica restrita aos cientistas
sociais e, em alguma medida, a outros segmentos que mantenham proximidade com
os povos indígenas, porém é urgente a necessidade de que mais segmentos sociais
tenham essa perceção, porque a salvaguarda dos saberes indígenas começa, antes
de tudo, no respeito e valorização da existência desses povos pela sociedade
envolvente.
[1] http://www.funai.gov.br/arquivos/conteudo/ascom/2015/doc/jun-06/IN%2003%202015.pdf
(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
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