segunda-feira, março 22, 2021

“Haja Alegria na Agonia”

Como é tradição, no dia 20 de agosto decorre a Romaria e as festividades populares com devoção Mariana da Senhora d’ Agonia, em Viana do Castelo, no coração do Alto Minho. Desde o século XVIII que esta devoção é celebrada. Contudo, passados mais de dois séculos, a tradição quebra-se e tudo se adapta a uma nova realidade dado o contexto de pandemia mundial que vivenciamos. A pandemia de Covid-19 veio trazer muita insegurança, medo, agitação interior e confinamento das pessoas em suas casas.

Apesar de serem uns anos atípicos os de 2020 e 2021, a data de 20 de agosto como a da Senhora da Agonia não se alterou, pelo contrário, manteve-se, adaptando-se, sim, à nova realidade. As festividades, cortejos e procissões tradicionais passaram de presenciais a uma plataforma online, por muito impossível que possa parecer. Obter um feedback positivo de algo que não é vivido presencialmente, e sim à distância, é bastante difícil. Por exemplo, quando um noivado é vivido à distância, denota-se que não é tão prazeroso e fácil de aguentar como um em que os enamorados se encontram juntos frequentemente. Ainda para mais quando de um dia para o outro, sem prévio aviso, passamos tudo para uma plataforma online, incluindo o convívio e a fé, como acontece na Romaria d’ Agonia.

“Fica assim percetível que apesar de ser em moldes diferentes, a “chieira” * não se deixa abater pela pandemia.” – “Sentir as Festas da Agonia. A romaria em tempos de pandemia” (2020, ComUM Online).

(*Chieira: Orgulho, vaidade.)

Em 1674 nasce uma Romaria: começa-se com devoção a praticar uma Via Sacra que começava no Convento Franciscano de Santo António e a 14ª estação terminava no local do “morro da forca”, e, mais tarde, aí foi construída a Capela do Bom Jesus do Santo Sepulcro. Em 1751, entra na Capela do Bom Jesus uma imagem da Nossa Senhora d’ Agonia e a partir daí cresce a devoção à Senhora d’ Agonia, a Santa Padroeira dos pescadores que os amparava na agonia que era passar noites no mar a lutar contra um potencial naufrágio. A capela é de planta ortogonal e foi erguida no século XVIII, e a escadaria foi adicionada mais tarde, no século XIX.

Cerca de dois séculos mais tarde a tradição modifica-se, mas nem por isso a população deixa de a realizar. Numa plataforma online, manteve-se o pedido à Senhora de que acudisse a população das agonias que enfrentam, no ano atípico de 2020, entre os dias 19 e 23 de agosto.

Muitos obstáculos foram enfrentados para a realização da festa online. Primeiro a dúvida da adesão das pessoas. Por muito que se tente manter o otimismo elevado, é difícil, visto o convívio se tratar, desta última vez, em confinamento, sentados no conforto da casa, através da janela virtual. Acredito que, e por experiência pessoal, e de muitos, a realização de atividades, festividades e convívios sociais dentro de casa nos faz atravessar por uma onda de ociosidade e de “preguiça”, se me é permitido dizer. Quanto mais nos confinamos e menos nos esforçamos para sair de casa, visto que nem essa simples atividade se pode, menos na verdade queremos sair de casa, o que leva à “lei do menor esforço” e eventualmente à depressão.

Este nosso confinamento obrigatório e toda a situação que estamos a passar faz-me lembrar o livro do escritor francês Michel Tournier, “Vendredi ou la Vie Sauvage”. A história resume-se a um homem que navegava até ao sul de Espanha, o barco naufragou e viu-se isolado numa ilha desértica no século XVIII. Após tentar escapar, vendo que não consegue, decide não se deixar abater ou desesperar, criando leis, horários, cultivando e ocupando o tempo a sobreviver, mas rapidamente se vê abalado pela solidão, e deixa-se levar pela ociosidade e pelo descanso, que o leva ao desleixo e à perda de orientação da própria vida.

Esta é uma visão pessimista da situação, mas visto que o livro referido acima tem um final feliz, também esta situação de Covid-19 terá certamente um final feliz. Esta tentativa de realizar e manter as festividades e celebrações, aulas e métodos educativos, e basicamente tudo, online, não só ergue a economia como mantém um ritmo de normalidade, ainda que nunca chegue a ser o mesmo, e leve muitos ao desespero. É uma alternativa muito esperançosa, visto que é a nossa maneira de sobreviver mentalmente e emocionalmente.

Voltando à Romaria, diz Rosa Caetano no artigo do ComUM: “Este ano (2020) vamos sentir a romaria, talvez com mais fé”. Rosa Caetano é a costureira que oferece e realiza os fatos/trajes tradicionais para os cortejos etnográficos, foi nomeada para presidir à Comissão de Honra da Romaria.

Gostaria de desenvolver a devoção e a fé tão realçadas nesta festividade. “Desde que há memória”, que se realiza a procissão solene (também conhecida como procissão da cidade), onde os pescadores, de quem é a Senhora Padroeira, erguem ao ombro o andor, ornado com flores, com a imagem da Senhora d’Agonia. No meio de uma azafama e de um ambiente estridente, faz-se silêncio. Isso já era habitual. Este ano passado, a Senhora pediu um silêncio extra, com cada fiel em casa confinado no conforto da casa. Talvez seja uma oportunidade de a Senhora partilhar a agonia que também ela sente connosco, seus filhos. Por isso, pede silêncio maior. Numa visão católica, esta é uma oportunidade de cada um expiar e oferecer as suas dores, os seus sacrifícios em prole de um bem maior. Para um fiel devoto, cada situação se aproveita para fazer uma boa ação: do bem para agradecer e, do mal, para oferecer por um bem maior, repito.

Já numa visão popular, pode-se dizer que é mais fácil cair no desânimo, visto que se vai e se age sem propósito, sem luta para defender algo maior, apenas se conformam, e este momento de quarentena, exigente, transporta consigo um desanimo geral. Contudo, acredito que com esta onda de tristeza é possível almejar e definir propósitos que nos elevam, e nos ajudam a dar a volta. “Há momentos que temos de procurar o tipo de cura e paz que só podem vir da solidão.” - Elizabeth Gilbert, “Eat, pray, love”, 2006, Penguin Books.

O ser humano precisa de um ideal para ser feliz, e sem dúvida que a fé preenche muitos. Porque para os fiéis, a sua fé, é o seu Património, é o bem mais precioso que carregam e do qual têm medo de perder (perde-se quando não é “alimentada”) e por isso lutam para a manter e para a propagar (ganha-se fé quando se pede com sinceridade e quando se “alimenta” com atos). “Viver sem Fé, sem um Património para defender, sem sustentar uma luta contínua pela Verdade não é viver, é fingir que se vive.” – Beato Pier Giorgio Frassati

Teresa Viana, mordoma do Cartaz da Romaria do ano de 2020, diz no artigo do ComUM Online, que espera que para o próximo ano (em 2021) seja melhor, sendo assim é um exemplo de como a versão virtual da festividade é sobreviver – para afastar/iludir a eventual solidão – e a versão presencial seria e será, como já o foi, o próprio viver. O confinamento corta completamente com o nosso instinto socializador e torna-nos como que animais recolhidos num zoo a serem observados e controlados por nós, pessoas. Nós, nas nossas diversas “jaulas”, somos controlados através dos vidros das janelas, pelas ruas vazias e os pombos das cidades. “Queríamos que houvesse festa” – Teresa Viana, “Sentir as Festas d’Agonia. A romaria em tempos de pandemia” (2020, ComUM Online).

Estes programas inovadores de vivência das festividades, romarias e eventos sociais através da TV, Rádio, e via Zoom, por exemplo, são formas de não nos deixarmos abater pela pandemia. No meu ponto de vista, é bastante positivo. É a via que arranjamos para ultrapassar esta má fase, que há-de passar eventualmente, como tudo na vida. “Não há bem que sempre dure nem mal que nunca acabe” – Ditado Popular.

A Festa da Senhora d’Agonia é um Património a defender. Este Património do Alto Minho, ou Vianense, do qual sou natural, é um recurso Intangível, a princípio, mas também se apropria de alguns recursos Tangíveis. Como contém festas e procissões, festividades, música e cantares ao desafio, costumes típicos populares, trajes e gastronomia típica. Um só evento consegue ser tão ambicioso a nível comercial, financeiro, e também turístico e social. Há uma troca de ideias de sabores, de conhecimentos, de produtos, de comida, de palavras e de recursos. Há uma panóplia de acontecimentos culturais dentro daqueles 5 dias, que no ano atípico de 2020 começou no dia 11 de agosto. Decorrem vários cortejos: etnográficos, culturais, procissões e missa no local, que contém uma larga zona relvada.

É sem dúvida um património a defender, a Romaria da Agonia, visto ser um evento comum a uma nação, e visto haver uma identidade histórica, naquelas gentes vianenses que se visualizam nos seus antepassados que também participavam nas celebrações e devoções. O facto de as festas serem constantemente, anualmente repetidas, mostra que é já mais que uma tradição e um costume. Faz parte da identidade das populações e dos participantes. Por isso, à vista de qualquer impedimento se arranjou de seguida uma alternativa, para não deixar morrer, para confortar os participantes, para dar sinal de esperança talvez.

 A realidade é que a tradição já é parte integrante das pessoas, e não se querem separar de algo que as distingue e as orgulha. A sua região é motivo de “chieira”, é património a preservar. Cada popular defende a sua como sendo a melhor, assim como os partidários políticos, os fiéis de X religião e os Clubistas desportivos de X Clube, todos têm a particularidade de amarem com garra o seu património. Como diria o Beato Pier Giorgio, não se visse sendo um leviano sem “partido”, sem opinião, que vai atrás da personalidade dos outros, isso é viver a vida de outro e não a própria.

“A cultura de um povo é o seu maior patrimônio. Preservá-la é resgatar a história, perpetuar valores, é permitir que as novas gerações não vivam sob as trevas do anonimato” (Nildo Lage).

 

Márcia Sousa Silva

Bibliografia:

Brito Adriana, Sousa João Pedro, “Sentir as festas d’Agonia. A Romaria em tempos de Pandemia”, 2020, ComUM Online;

G. d’Oliveira Martins, “Património Cultural: Realidade Viva”, 2020, Fundação Francisco Manuel dos Santos

Gilbert Elizabeth, “Eat, pray, love”, 2006, Penguin Books;

H. Barranha, “Património Cultural: conceitos e critérios fundamentais”, 2016, IST PRESS e ICOMOS-Portugal

Associação Promotora das Festas de Viana do Castelo (site online):

https://vianafestas.com/pt/eventos-e-romarias/romaria-sra-da-agonia#procissao-solene 

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)

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