segunda-feira, março 15, 2021

Novos usos para uma velha ruralidade

Gostaria de refletir acerca da ruralidade que sempre vivemos, da ruralidade que atualmente existe e daquela que nos querem impor. Devemos partir do princípio que o rural se distingue do urbano (espaços, lugares, tempos, espaço-tempos e modos de vida) e que a questão principal será determinar os limites de uma e outra realidades. Esta limitação permitirá perceber as diferentes construções imaginárias de identidades, nomeadamente: a ideia de prestígio associado à vida nas cidades, o fascínio das luzes da cidade, o prestígio de ser migrante: comodidades, dinheiro e aparência, o atraso e a estática rural por oposição à dinâmica da cidade. Portanto, para podermos falar de ruralidade(s) teremos que ter sempre em consideração os processos de urbanização e, mais recentemente, os de metropolitização – enquanto capacidade de atração de indivíduos (rotinas, hábitos e consumos) por parte das cidades e suas regiões.

Em Portugal, e segundo João Ferrão e Duarte Vala (2002), existirão 4 cidades/regiões com potencial de metropolitização – Lisboa, grande Porto, Algarve e região triangular entre Viseu, Aveiro e Coimbra, o que remeterá o restante território para uma existência sem grande capacidade de atrair novos indivíduos e novas atividades, veja-se, a título de exemplo, a notícia destes dias (14/03/2021) sobre o forte descontentamento dos autarcas e municípios em relação ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) apresentado recentemente pelo governo, qualificando-o de centralista, não se preocupar com os territórios e com a coesão territorial (conferir notícia do Público, de Domingo, 14 de Março de 2021, intitulada “Autarcas acusam Governo de centralismo e vêem PRR como oportunidade perdida”).

Falar do mundo rural na atualidade é falar de um mundo em profundas mutações, cujas atividades económicas, dinâmicas sociais e valorizações materiais e simbólicas têm evoluído em vários sentidos. Para além disto, assistimos nos últimos anos a um crescente consumo dos símbolos rurais: a explosão do turismo rural foi o expoente máximo desse consumo; a “descoberta” dos certames temáticos de cariz local (feiras de fumeiro, de caça, de pesca, de produtos da terra, etc.) que valorizam aspetos e produtos tradicionais locais; a folclorização de certas atividades agrícolas (matanças, ciclos de produção, etc.) e recreativas (grupos de caretos e grupos de gaiteiros, ressurgimento de tradições sagradas e/ou profanas) revivalistas de tempos idos; a destradicionalização, ou seja, a procura de novas formas de expressão em cada momento/atividade (alheiras de Bacalhau, grupo de pauliteiras ou experiências gourmet com produtos regionais) que ao mesmo tempo que mantêm a referência cultural procuram a inovação e a diferenciação; a agricultura biológica que se vende à custa de uma imagem vegetariana, naturalista e saudável; o turismo da natureza (normalmente associado à prática de desportos de aventura e de conhecimento); a preservação e reconstrução de património construído – arqueológico (castros, fornos de telha, de cal) e seus centros interpretativos, rotas temáticas e pacotes turísticos.

Para um melhor entendimento do imaginário rural será preciso também ter em conta os actores sociais que permitem este novo cenário. Hoje em dia podemos identificar diferentes tipos de indivíduos no espaço rural, que se caracterizam por interesses divergentes, mas que se manifestam num mesmo território. Socorrendo-me de uma caracterização tipológica, diria que temos: a) os sobreviventes – aqueles que apesar de tudo permaneceram e trabalham no rural (…que nos remetem para o conceito de resistência); b) novos pendulares – aqueles que apesar de trabalharem nos sectores secundário e terciário e num espaço urbano, optaram por viver no espaço e rural e no seu dia-a-dia viajam entre os dois “mundos”; c) os regressados – aqueles que depois de uma vida de trabalho noutras geografias e noutros contextos laborais, regressam à comunidade rural de origem; d) consumidores rurais – todos aqueles que, tal como vimos atrás, procuram os símbolos rurais como divertimento, férias, descanso, aventura, etc; e) investidores rurais – aqueles que apesar de urbanitas procuram o rural e adquirem um espaço, que adotam como sendo “seu”. Uma casa, uma quinta, uma propriedade, etc. Muitas vezes trata-se de puro investimento; f) novos rurais – a chegada de estrangeiros, que no país de origem tinham um modo de vida urbano e cá optam por se estabelecer numa comunidade rural. Outro exemplo são os novos povoadores que saem das cidades e procuram novas oportunidades no interior rural do país (até existia uma empresa que fomentava e incentivava essa movimentação – “os novos povoadores”).

Os habitantes das comunidades rurais, ao contrário do que possam pensar, não têm o poder e a influência de decisão na construção dos seus futuros. Por muito que se inventem novos programas e incentivos para o desenvolvimento local, por muito que se venda o discurso da valorização dos recursos naturais e culturais, serão sempre interesses exógenos a ditar o presente e possíveis futuros. Interesses que não são mais do que respostas procedentes de certas classes urbanas e grupos sociais que, utilizando diversas estratégias, se sentem legitimadas para decidir o futuro das comunidades rurais, sem ter em conta, normalmente, a opinião dos locais do mundo rural.

Por último, importa assumir que os dados aqui apresentados, mais do que certezas, serão dúvidas e, por isso, mais do que afirmações, devem ser entendidos como meras hipóteses que importa estudar e/ou explorar. Serão ou não novos usos para uma já velha ruralidade? Serão ou não, sequer, ruralidades? Não creio. O rural está na moda, vende-se e por isso, atualmente, valoriza-se. Apenas.

 

Luís Vale

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)

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