Gostaria de refletir acerca da ruralidade que sempre vivemos, da ruralidade que atualmente existe e daquela que nos querem impor. Devemos partir do princípio que o rural se distingue do urbano (espaços, lugares, tempos, espaço-tempos e modos de vida) e que a questão principal será determinar os limites de uma e outra realidades. Esta limitação permitirá perceber as diferentes construções imaginárias de identidades, nomeadamente: a ideia de prestígio associado à vida nas cidades, o fascínio das luzes da cidade, o prestígio de ser migrante: comodidades, dinheiro e aparência, o atraso e a estática rural por oposição à dinâmica da cidade. Portanto, para podermos falar de ruralidade(s) teremos que ter sempre em consideração os processos de urbanização e, mais recentemente, os de metropolitização – enquanto capacidade de atração de indivíduos (rotinas, hábitos e consumos) por parte das cidades e suas regiões.
Em Portugal, e segundo
João Ferrão e Duarte Vala (2002), existirão 4 cidades/regiões com potencial de
metropolitização – Lisboa, grande Porto, Algarve e região triangular entre Viseu,
Aveiro e Coimbra, o que remeterá o restante território para uma existência sem
grande capacidade de atrair novos indivíduos e novas atividades, veja-se, a
título de exemplo, a notícia destes dias (14/03/2021) sobre o forte
descontentamento dos autarcas e municípios em relação ao Plano de Recuperação e
Resiliência (PRR) apresentado recentemente pelo governo, qualificando-o de
centralista, não se preocupar com os territórios e com a coesão territorial (conferir
notícia do Público, de Domingo, 14 de
Março de 2021, intitulada “Autarcas acusam Governo de centralismo e vêem PRR
como oportunidade perdida”).
Falar do mundo rural na atualidade
é falar de um mundo em profundas mutações, cujas atividades económicas,
dinâmicas sociais e valorizações materiais e simbólicas têm evoluído em vários
sentidos. Para além disto, assistimos nos últimos anos a um crescente consumo
dos símbolos rurais: a explosão do turismo rural foi o expoente máximo desse
consumo; a “descoberta” dos certames temáticos de cariz local (feiras de
fumeiro, de caça, de pesca, de produtos da terra, etc.) que valorizam aspetos e
produtos tradicionais locais; a folclorização de certas atividades agrícolas
(matanças, ciclos de produção, etc.) e recreativas (grupos de caretos e grupos
de gaiteiros, ressurgimento de tradições sagradas e/ou profanas) revivalistas
de tempos idos; a destradicionalização, ou seja, a procura de novas formas de
expressão em cada momento/atividade (alheiras de Bacalhau, grupo de
pauliteiras ou experiências gourmet
com produtos regionais) que ao mesmo tempo que mantêm a referência cultural
procuram a inovação e a diferenciação; a agricultura biológica que se vende à
custa de uma imagem vegetariana, naturalista e saudável; o turismo da natureza
(normalmente associado à prática de desportos de aventura e de conhecimento); a
preservação e reconstrução de património construído – arqueológico (castros,
fornos de telha, de cal) e seus centros interpretativos, rotas temáticas e
pacotes turísticos.
Para
um melhor entendimento do imaginário rural será preciso também ter em conta os
actores sociais que permitem este novo cenário. Hoje em dia podemos identificar
diferentes tipos de indivíduos no espaço rural, que se caracterizam por
interesses divergentes, mas que se manifestam num mesmo território. Socorrendo-me
de uma caracterização tipológica, diria que temos: a) os sobreviventes –
aqueles que apesar de tudo permaneceram e trabalham no rural (…que nos remetem
para o conceito de resistência); b) novos pendulares – aqueles que apesar de
trabalharem nos sectores secundário e terciário e num espaço urbano, optaram
por viver no espaço e rural e no seu dia-a-dia viajam entre os dois “mundos”;
c) os regressados – aqueles que depois de uma vida de trabalho noutras
geografias e noutros contextos laborais, regressam à comunidade rural de
origem; d) consumidores rurais – todos aqueles que, tal como vimos atrás,
procuram os símbolos rurais como divertimento, férias, descanso, aventura, etc;
e) investidores rurais – aqueles que apesar de urbanitas procuram o rural e
adquirem um espaço, que adotam como sendo “seu”. Uma casa, uma quinta, uma
propriedade, etc. Muitas vezes trata-se de puro investimento; f) novos rurais –
a chegada de estrangeiros, que no país de origem tinham um modo de vida urbano
e cá optam por se estabelecer numa comunidade rural. Outro exemplo são os novos
povoadores que saem das cidades e procuram novas oportunidades no interior
rural do país (até existia uma empresa que fomentava e incentivava essa
movimentação – “os novos povoadores”).
Os
habitantes das comunidades rurais, ao contrário do que possam pensar, não têm o
poder e a influência de decisão na construção dos seus futuros. Por muito que
se inventem novos programas e incentivos para o desenvolvimento local, por
muito que se venda o discurso da valorização dos recursos naturais e culturais,
serão sempre interesses exógenos a ditar o presente e possíveis futuros.
Interesses que não são mais do que respostas procedentes de certas classes
urbanas e grupos sociais que, utilizando diversas estratégias, se sentem
legitimadas para decidir o futuro das comunidades rurais, sem ter em conta, normalmente,
a opinião dos locais do mundo rural.
Por
último, importa assumir que os dados aqui apresentados, mais do que certezas,
serão dúvidas e, por isso, mais do que afirmações, devem ser entendidos como
meras hipóteses que importa estudar e/ou explorar. Serão ou não novos usos para
uma já velha ruralidade? Serão ou não, sequer, ruralidades? Não creio. O rural
está na moda, vende-se e por isso, atualmente, valoriza-se. Apenas.
Luís Vale
(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
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