quarta-feira, março 11, 2020

A turistificação dos barcos rabelos: um delito D´ouro?


Quem deambula pela zona ribeirinha de Gaia e do Porto, aprazível paisagem da zona histórica, classificada como Património da Humanidade, não fica indiferente à presença dos barcos rabelos, elemento eminentemente identitário e incontornável do património regional que, por sua vez, encerra em si um compósito de pendor tradicional e cultural, em concatenação com o tráfego fluvial do Douro, pela sua difusão como estandarte e cooperante do progresso da região duriense e na dignificação e subsecutiva divulgação do Vinho do Porto numa cabal projeção a nível mundial.  
Para lá da sua memorável funcionalidade de transporte e particular tradição do Vinho do Porto, os rabelos exprimiram-se como uma máquina aprimorada dos seus tempos, pela sua consolidação numa fusão parcimoniosa de prudente idealização, de esplêndido e ostensivo porte, autêntica representação de uma época colossal remota, fruto do saber e sagacidade aprimorados das gentes do rio, resultando numa embarcação de configuração tão bem adaptada às atribulações fluviais do Douro. Por todo este elenco imensurável de proventos, o rabelo apresentou-se como a força náutica por excelência para a dinamização fluvial entre o Porto e as terras durienses, ainda que com o passar do tempo e a par da conclusão da construção da linha de caminho-de-ferro do Douro, associada ao crescente desenvolvimento do transporte rodoviário ao longo do século XX, e nos inícios da década de 60, aquando do enceto do desenvolvimento do aproveitamento hidroelétrico do Douro, estas embarcações pareciam estar condenadas a desaparecer, num atroz golpe de morte, pela sua ineficiência para a faina fluvial, resultando na decadência do transporte fluvial.
Entretanto, pela sua aceção como elemento patrimonial e icónico da região, de facto, foram várias as instituições e personalidades que teimaram na preservação dos rabelos, embora com outras funcionalidades, sobretudo direcionada para fins turísticos, em recurso ao boom turístico da região. Então, será possível nos dias de hoje a utilização a favor do turismo de uma mais-valia que se prende com a história e epopeia da vivência e da faina fluvial no Douro, como estratégia de atração turística e, porventura, o desenvolvimento regional, em "detrimento da deturpação" dos rabelos? Evidentemente que, apesar de os rabelos terem sido arredados da sua incumbência inicial, a propósito da preservação, foi incutida a estas embarcações uma nova funcionalidade por imisção turística, adaptadas para o transporte turístico, destinadas para passeios e cruzeiros, bem como outras iniciativas evocativas de um testemunho histórico dos tempos de glória, em particular pela sua forte carga vinculada à identidade regional, a célebre regata dos Rabelos tem lugar naquele que é o maior dia de Gaia e do Porto, o dia de S. João, um dos eventos peculiares que embelece as margens do Douro e contribui para a profunda conservação de uma tradição dignamente lusitânica, num afinco obstante para a deterioração das embarcações.
Como rastro imemorial, o ambiente junto à ribeirinha, combinado com o aroma das pipas de madeira e os barcos rabelos a flutuar no rio Douro, considerando os rabelos como elemento inevitável da paisagem ribeirinha, pela sua representatividade de forte carga identitária, como proprietários do Douro, no qual sobejam estas embarcações, permanecendo estagnadas, como suporte publicitário, atendendo à parca navegabilidade fluvial. Portanto, seria pertinente para a vivificação fluvial, a coordenação de formações e cursos para a instrução da navegação dos rabelos, como a organização de mais regatas.
Importa realçar a afeição dos turistas para a partida num rabelo à descoberta do Douro, para uma experiência de navegação, e o desvelo pelo processo de construção das embarcações, devotados particularmente pela sua preservação. Por isso, é indispensável uma reconsideração das infraestruturas de embarque e apoio nas margens, complementada pela definição e criação de circuitos capazes de atrair e agradar os turistas.
Pela sua inolvidável relevância história, os rabelos devem ser recordados como a representação de um transporte que vai para além da sua própria funcionalidade, pelo reconhecimento como testemunho vivo de história e tradição, pela tamanha audácia e destemor do povo português numa época em que a própria construção das embarcações e as viagens se sucedeu num cenário imprevisível de peripécias no limiar entre a vida e a morte, não obstante a desprovida recognição do esforço heroico humano.
Contudo, permanecem alguns obstáculos relacionados com a preservação das embarcações, sobretudo a respeito da manutenção e fabrico, resultado da falta de apoio e um inconsciente desincentivo por preterição de programas de apoio e legislação específica, acrescidas de outras práticas desvigorosas num conspecto de escassez de políticas de apoio. Com efeito, é importante ponderar estas dificuldades para avaliar o imprescindível desempenho para a consolidação de uma autêntica política de turismo, usufrutuária das próprias potencialidades e vivências da região.

Ana Gomes

Bibliografia[1]
Cardoso, A.B. (2019). Como se "vestia" o Vinho do Porto (século XVI e XVIII). In H.Pina (coord.), Grandes Problemáticas do Espaço Europeu - Políticas de Ordenamento e Recomposições Territoriais nas Periferias Europeias (pp.102-111). Porto: FLUP.
            Cardoso, A.M.B. (1998). O Douro: estrada fluvial nos alvores do século XVIII. Douro: Estudos & Documentos, 3 (5), 117-132.
Pereira, M.A. (2008). As Arquitecturas do vinho de um porto monofuncional. Revista da Faculdade de Letras. Historia, 9, 169-192.
            Rodrigues, J.L.S. (2004). Os marinheiros do Douro no fim da viagem baseado na obra "Porto Manso" de Alves Redol. Douro: Estudos & Documentos, 9 (18), 265-284.



[1] Sob a norma APA 6th.

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)

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