Quem deambula pela zona ribeirinha de Gaia e do Porto, aprazível paisagem da zona histórica, classificada como Património da Humanidade, não fica indiferente à presença dos barcos rabelos, elemento eminentemente identitário e incontornável do património regional que, por sua vez, encerra em si um compósito de pendor tradicional e cultural, em concatenação com o tráfego fluvial do Douro, pela sua difusão como estandarte e cooperante do progresso da região duriense e na dignificação e subsecutiva divulgação do Vinho do Porto numa cabal projeção a nível mundial.
Para lá da sua memorável funcionalidade de transporte e
particular tradição do Vinho do Porto, os rabelos exprimiram-se como uma
máquina aprimorada dos seus tempos, pela sua consolidação numa fusão parcimoniosa
de prudente idealização, de esplêndido e ostensivo porte, autêntica
representação de uma época colossal remota, fruto do saber e sagacidade
aprimorados das gentes do rio, resultando numa embarcação de configuração tão
bem adaptada às atribulações fluviais do Douro. Por todo este elenco
imensurável de proventos, o rabelo apresentou-se como a força náutica por
excelência para a dinamização fluvial entre o Porto e as terras durienses,
ainda que com o passar do tempo e a par da conclusão da construção da linha de
caminho-de-ferro do Douro, associada ao crescente desenvolvimento do transporte
rodoviário ao longo do século XX, e nos inícios da década de 60, aquando do
enceto do desenvolvimento do aproveitamento hidroelétrico do Douro, estas
embarcações pareciam estar condenadas a desaparecer, num atroz golpe de morte,
pela sua ineficiência para a faina fluvial, resultando na decadência do
transporte fluvial.
Entretanto, pela sua aceção como elemento patrimonial e
icónico da região, de facto, foram várias as instituições e personalidades que
teimaram na preservação dos rabelos, embora com outras funcionalidades,
sobretudo direcionada para fins turísticos, em recurso ao boom turístico da região. Então, será possível nos dias de hoje a
utilização a favor do turismo de uma mais-valia que se prende com a história e
epopeia da vivência e da faina fluvial no Douro, como estratégia de atração
turística e, porventura, o desenvolvimento regional, em "detrimento da
deturpação" dos rabelos? Evidentemente que, apesar de os rabelos terem
sido arredados da sua incumbência inicial, a propósito da preservação, foi
incutida a estas embarcações uma nova funcionalidade por imisção turística,
adaptadas para o transporte turístico, destinadas para passeios e cruzeiros,
bem como outras iniciativas evocativas de um testemunho histórico dos tempos de
glória, em particular pela sua forte carga vinculada à identidade regional, a
célebre regata dos Rabelos tem lugar naquele que é o maior dia de Gaia e do
Porto, o dia de S. João, um dos eventos peculiares que embelece as margens do
Douro e contribui para a profunda conservação de uma tradição dignamente
lusitânica, num afinco obstante para a deterioração das embarcações.
Como rastro imemorial, o ambiente junto à ribeirinha,
combinado com o aroma das pipas de madeira e os barcos rabelos a flutuar no rio
Douro, considerando os rabelos como elemento inevitável da paisagem ribeirinha,
pela sua representatividade de forte carga identitária, como proprietários do
Douro, no qual sobejam estas embarcações, permanecendo estagnadas, como suporte
publicitário, atendendo à parca navegabilidade fluvial. Portanto, seria
pertinente para a vivificação fluvial, a coordenação de formações e cursos para
a instrução da navegação dos rabelos, como a organização de mais regatas.
Importa realçar a afeição dos turistas para a partida num
rabelo à descoberta do Douro, para uma experiência de navegação, e o desvelo
pelo processo de construção das embarcações, devotados particularmente pela sua
preservação. Por isso, é indispensável uma reconsideração das infraestruturas
de embarque e apoio nas margens, complementada pela definição e criação de
circuitos capazes de atrair e agradar os turistas.
Pela sua inolvidável relevância história, os rabelos devem
ser recordados como a representação de um transporte que vai para além da sua
própria funcionalidade, pelo reconhecimento como testemunho vivo de história e
tradição, pela tamanha audácia e destemor do povo português numa época em que a
própria construção das embarcações e as viagens se sucedeu num cenário
imprevisível de peripécias no limiar entre a vida e a morte, não obstante a
desprovida recognição do esforço heroico humano.
Contudo, permanecem alguns obstáculos relacionados com a
preservação das embarcações, sobretudo a respeito da manutenção e fabrico,
resultado da falta de apoio e um inconsciente desincentivo por preterição de
programas de apoio e legislação específica, acrescidas de outras práticas
desvigorosas num conspecto de escassez de políticas de apoio. Com efeito, é
importante ponderar estas dificuldades para avaliar o imprescindível desempenho
para a consolidação de uma autêntica política de turismo, usufrutuária das
próprias potencialidades e vivências da região.
Ana
Gomes
Cardoso, A.B. (2019). Como se "vestia" o Vinho do
Porto (século XVI e XVIII). In H.Pina (coord.), Grandes Problemáticas do Espaço Europeu - Políticas de Ordenamento e
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(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)
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