quinta-feira, março 26, 2020

Palácio de Cristal: reminiscência de um olvido patrimonial e do passado de Portugal

           Na atualidade, o termo "Palácio" remete-nos para um dos mais fascinantes locais da cidade do Porto, situado no antigo campo da Torre da Marca, que albergou em tempos o ilustre Palácio de Cristal e os seus jardins, um agradável espaço verde provido de uma localização promontorial sublime junto ao rio Douro, a partir do qual se contempla uma inigualável perspetiva panorâmica da cidade, difícil de minuciar mas a qual os olhos não se afadigam de apreciar.
      Factualmente, a construção palaciana pende com o discernimento urbano nos finais do século XIX, uma época marcada pelo progresso e desenvolvimento económico, industrial e tecnológico. Sinónimo de progresso, o edifício ostentava na parte cimeira da fachada principal a palavra progredior, representativa da época, relacionada com a vivência progressista urbana. Portanto, o Palácio foi construído para um propósito urbano, que se prendia com a configuração de um espaço destinado a eventos e exposições agrícolas, artísticas, culturais e industriais, constituindo-se como um testemunho vivo do interesse da cidade.
          Produto de uma nova tendência arquitetónica da construção em ferro e vidro que acometeu a Europa oitocentista finissecular, o Palácio reconheceu-se como o estandarte da conceção contemporânea, assumindo-se como um dos ex-libris da cidade, pelo aproveitamento de técnicas construtivas e materiais inovadores para a época, desde o proveito da introdução portentosa do granito na construção, pela concessão de caraterísticas próprias, como o recurso ao ferro e vidro e a ostentação de uma fachada granítica ladeada por torreões monumentais.
         Primordialmente concebido para acolher a Grande Exposição Internacional do Porto, o Palácio, representação sui generis da arquitetura do ferro em Portugal, foi palco de algumas das mais significativas mostras e eventos nacionais durante o seu período de atividade, na sequência do cumprimento do seu intento, tornando-se um importante espaço cultural e de referência pelo acolhimento de prodigiosos concertos de grandes portentos da música clássica, e como albergue de inúmeras exposições, feiras e iniciativas culturais, desportivas e recreativas.
          A partir de certa altura, o Palácio evidenciou grandes problemas económicos que colocariam em causa o seu funcionamento - falta de dinheiro e manutenção do complexo arquitetónico -, onde começaram a ser visíveis os sinais de abandono, degradação e desleixo. Perante o estado de ruína do edifício, resultado do débil investimento na recuperação, conjugado com a permanente articulação de um reportório de reveses financeiras determinantes para a preservação inviável do edifício, a Câmara do Porto adquiriu, em 1933, o Palácio de Cristal e os jardins.
O Palácio foi condenado à demolição em 1951, com a premência e o pretexto da construção do Pavilhão dos Desportos, um espaço apto para a realização dos Campeonatos da Europa e do Mundo de Hóquei em Patins, no ano seguinte. Contudo, até que ponto a destruição palaciana foi tida como uma atitude precipitada? Efetivamente, para a realização de um campeonato do mundo de hóquei em patins era necessário um pavilhão, embora a sua construção poderia ter sido remetida para outro espaço urbano. Deste modo, o palácio foi sujeito à demolição num fim inglório, em sacrifício de uma obra tão emblemática da cidade. Por sua vez, o desmantelamento foi, de facto, célere, tendo-se erguido no seu lugar o Pavilhão dos Desportos - uma edificação deselegante e prática, munida de betão - que manteve a denominação original, acabando por ser renomado, em 1988, de Pavilhão Rosa Mota, numa homenagem patrimonial de reconhecimento a uma das mais ilustres atletas portuguesas. Contudo, a destruição foi sujeita a contestação popular contra este delito patrimonial, corroborado pela sobrevivência da designação Palácio de Cristal até aos nossos dias, prenúncio de um saudosismo e fascínio de um tempo passado, a par da resistência incólume dos jardins, pela revivificação de uma emanante saudade de um edifício que se perdeu nas brumas do tempo e da história.
          Com efeito, os jardins do Palácio permanecem estonteantes, constituindo-se como um património precioso, favorecido pelo envolvente património botânico e a dinâmica cultural e recreativa, num afinco promotor para o incremento da prudência ambiental pública usufrutuária. Por isso, é importante a preservação para disposição de todos, por todo um cuidado impregnado na recuperação e reabilitação, em respeito da autenticidade, história e conservação, como a valorização do património natural e criação de espaços vocacionados para atividades culturais, como cenário de profusas manifestações artísticas e de lazer. Neste sentido, permanece um enlace indissociável entre o património e a memória, pelo vínculo de uma vivência presente procedente da compreensão do passado. Deste modo, os jardins afirmam-se como o testemunho vivo da passagem do tempo, cooperantes da compleição da única evidência do que o espaço foi noutros tempos, pela conservação da memória e toponímia, caraterísticas inerentes ao seu espaço primordial que vigoram ainda nos dias de hoje. 
        Protótipo de uma beleza inalcançável, o Palácio não resistiu em termos estruturais, embora permaneça vivo na memória dos portuenses enquanto parte integrante da história da cidade, pela preservação de um lugar de grande atração turística. Assim, a memória constitui-se como um elemento fulcral na salvaguarda do património, quando a própria preservação efetiva já é inconcebível, considerando que a demolição do palácio foi encarada como um crime de depauperação patrimonial, do qual o Porto nunca se olvidará.

Ana Catarina Gomes

Bibliografia[1]
           Costa, M.C. (2019). Entre todas as cidades, a cidade de Mário Cláudio. Convergência Lusíada, (41), 47-61.
            Rocha, A. (2012). Integração do Palácio de Exposições e Pavilhão para Desportos nos jardins do Palácio de Cristal. A obra nasce: revista de Arquitetura da Universidade Fernando Pessoa, (7), 47-53.
            Peixoto, P. T. (2012). Os jardins do Palácio de Cristal e as Fontes D´art. Revista Arquitetura Lusíada, (4), 105-112.
            Vieira, M.F.S.B. (2013). Os dois "Palácios de Cristal" ou a recepção da Exposição Mundial de Londres (1851) em Portugal. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas, 18, 427-438.



[1] Sob a norma APA 6th.

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)


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