sábado, março 14, 2020

Turismo sombrio: viabilidade socioeconômica e preservação da memória

Os temas relacionados com o Património Sombrio, assim como o turismo que dele deriva e as viabilidades socioeconômicas existentes por trás de ambos, desperta o olhar acadêmico, embora tardiamente, a partir de meados dos anos de 1990, através de pesquisas e publicações especializadas, atingindo um maior volume de trabalhos já nos anos 2000.
Dark Heritage ou, em português, “Património Sombrio”, representa a associação a locais históricos que retratam eventos relacionados com o sofrimento humano, e tornaram-se um aspecto significativo da visitação turística nos últimos tempos. O tombamento pela Unesco, em 1979, do Campo de Concentração de Auschwitz é considerado um marco temporal nessa modalidade patrimonial.
Neste tombamento, a Unesco reitera que o património não é um relicário de obras belas e edificadas, mas uma representação da memória da humanidade em que se celebra a vítima, não o lugar e o evento. São lugares que guardam a relação com o passado, porém não excita uma transposição de beleza, alegria e nem de nostalgia, mas sim reflexões sobre o incomodo.
Como podemos observar nos dados a seguir, o turismo tomou uma dimensão muito maior com o passar dos anos, e em Portugal não foi diferente.


Inserido nessa conjuntura, o Turismo Sombrio vem cada dia mais ganhando visibilidade, talvez por motivos intrínsecos à percepção do indivíduo em busca do novo e a necessidade de o mercado criar nova frente de exploração, além do denominado turismo “tradicional”.
A definição de Turismo Sombrio perpassa a experiência de viajar para um sítio, total ou parcialmente, motivado pelo desejo de encontros reais ou de simbologias com a morte, particularmente, mas não exclusivamente, a morte violenta, e sugere que o termo sombrio alude a um senso de práticas perturbadoras aparentes e produtos e experiências mórbidos. Com isso em mente, sugere que possa ser referido como viajar para locais associados a atrocidades, desastres e sofrimento humano, total ou parcialmente, para experiências ou benefícios sociais e até psicológicos.   Não existe experiência de herança cultural sombria para a cura, senso coletivo de identidade, senso de empatia, busca de raízes, reunião espiritual e reconexão com ancestrais ou raízes ancestrais, peregrinação e homenagem, sentimento de pertença, autodescoberta lembrança, educação ou entretenimento, demonstração de identidade nacional, luto.
Sobre o perfil dos adeptos dessa modalidade turística podemos supor que busquem situações estimulantes diferentes de sua rotina diária quando possuem algum tempo disponível, escapando da rotina, uma espécie em seu subconsciente de fuga inusitada. Lidar com a fragilidade do outro é reconhecer a própria, e tudo que se refere a esse segmento deve ser tratado com sutileza, ou seja, nesses espaços estão muito mais do que sítios históricos e sim lugares que fazem com que o indivíduo aprenda a lidar com sentimentos complexos.
Com relação aos cuidados, esses lugares devem ser administrados com responsabilidade, porque dispõem de um grau de sensibilidade dessas pessoas, para que a experiencia ali vivida seja a melhor possível e não somente carregada de uma atmosfera de sombras, pois lida diretamente com emoções e sentimentos, muitas vezes esquecidos ou até evitados, tais como:  insegurança, gratidão, humildade e até mesmo superioridade.
O Turismo Sombrio, ou “assombrado”, ainda é pouco estudado em Portugal, mas com um grande potencial de exploração e boa viabilidade econômica. Podemos citar, entre inúmeros exemplos, a presença de sanatórios, presídios, locais de inquisição, cemitérios como espaços fiáveis economicamente, mas nunca deixando perder a essência de preservação, tanto no quesito património, em seu sentido arquitetônico, como também sua memória, ou seja, o lado didático e educacional sempre em primeiro plano. Mas, desde já, infelizmente, salientamos que, mesmo com todos os cuidados necessários, nota-se que nem sempre o comportamento do indivíduo é o esperado, daí a importância de ações paralelamente constituídas de conscientização e repúdio à banalização dos eventos. Afirmo que plenamente este deve ser o interesse primordial, o que faz com que através destes conteúdos aprendidos não repetiremos mais os erros tristes do passado.
Em Portugal, mesmo que ainda incipiente, já é possível encontrar alguns sítios explorados sob o viés do Turismo Sombrio, ou seja, podemos dizer que hoje existe um pouco mais de visibilidade neste tipo de entretenimento, ainda que timidamente explorado.
Sendo assim caracterizados em tópicos e rankings pré-estipulados, esses sítios estão associados a lugares onde ocorreram tragédias ou mortes, como, por exemplo, a Pousada da Serra da Estrela, que está no lugar de um antigo sanatório. Aberto em 1944, recebia doentes com tuberculose, onde naturalmente a grande maioria não sobrevivia. Este edifício, que fechou suas portas, deteriorou-se com os anos e, antes de suceder para a sua transformação numa pousada, aparentava um ar assustador, entre as ruínas e o "fechado a sete chaves”, como se percebêssemos que ali não “devíamos” entrar por nada.
O mito do sanatório assombrado com as almas que não descansaram, de alguma forma, transpôs-se para esta belíssima pousada, atraindo assim muitos turistas curiosos. Neste exemplo fica claro a intervenção que a mídia trás, impulsionando assim o consumidor, através de suas manobras comerciais e de marketing.



Outro exemplo de sítio português é o hotel Bela Vista, localizado em Portimão, no Algarve. Hoje é um Boutique Hotel, recuperado em 2011, mas a sua fama de assombrado continua, mesmo depois das obras e da reabertura. Acredita-se que ainda podem ser ouvidos os gemidos e visto o vulto da antiga proprietária, que faleceu em um dos seus quartos, contribuindo para a área temerosa do local.


Concordamos que os elementos que compõem a modalidade patrimonial e turística em questão realmente despertam a curiosidade e o interesse daqueles que se envolvem com todo o processo, mas enfatizamos que talvez, aqui, nossa principal tarefa é lembrar que, apesar de todos esses aspectos, mitos e histórias, é primordial que, antes de qualquer tipo de exploração desses locais e também durante qualquer espécie de visitação, o entretenimento não se simplifique em mera banalidade de divertimento, pois existem histórias de pessoas, famílias e comunidades que se transformaram através desses locais de sofrimento. Acreditamos que a melhor forma para que essas histórias sejam dignas de socialização e reflexão são sempre através de caminhos instrucionais e educacionais claros, para que os propósitos verdadeiros de interação sejam aproveitados de maneira saudável.

Karen C. Galletto

Referências
Foley M., Lennon J. (1996a). Editorial: Heart of Darkness. International Journey of Heritage Studies.
Foley M., Lennon J. (1996b). JFK and dark tourism: a fascination with assassination. International Journey of Heritage Studies.
Stone, P. R. & Sharpley, R. (2008). Consuming dark tourism: A thanatological perspective. Annals of Tourism Research, 35.

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, lecionada ao Mestrado em Património Cultural, do ICS/UMinho)

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