"Uma alheira com a pele fendida; tostada do calor da fritura, a derreter aquele unto doirado e recendente a alho - quem haverá aí, senhores, que não se tente?"
Manuel Mendes
Mirandela é uma cidade portuguesa situada no norte de Portugal, distrito de Bragança, na sub-região do Alto Trás-os-Montes. Geograficamente, a cidade localiza-se no vale do Rio Tua, numa zona plana de solos férteis, onde se cultivam, essencialmente, oliveiras. Uma vez que a cidade se encontra cercada de montes, enquadra-se num microclima que se evidencia nos verões quentes e abafados típicos da zona, tornando-a conhecida como “terra quente transmontana”. Com cerca de 25 000 habitantes, a cidade distingue-se, a nível patrimonial e turístico, pelas festas da Nossa Senhora do Amparo, a organização de campeonatos europeu e mundial de Jet-Ski e a relevância patrimonial da Ponte de Pedra (sobre o rio Tuela), da Ponte românica (sobre o rio Tua) e do Castelo de Mirandela, de que resta apenas a porta de Santo António. No entanto, Mirandela é sobretudo conhecida, a nível nacional, pela sua típica e antiga gastronomia que confere autenticidade e originalidade à região. Entre as iguarias disponíveis, destacam-se os Papos de Anjo de Mirandela, o Folar de Carne e a Alheira de Mirandela.
A Alheira de Mirandela é um enchido tradicional fumado, constituído por carne e gordura de porco da raça Bísara - ou pelo produto de cruzamento desta com as raças Large, White, Landrace, Duroc e Pietrain (sendo exigido, pelo menos, 50% de sangue Bísaro) -, carne de aves, pão de trigo, banha e azeite da região de Trás-os-Montes, condimentados com sal, alho, pimentão-doce e/ou picante. Tem um formato de ferradura, cilíndrico, com um revestimento de tripa natural e recheio de uma pasta fina com os ingredientes já descritos. Consomem-se fritas em azeite e, geralmente, servidas com legumes cozidos, podendo também ser estufadas, depois de envolvidas em couve lombarda. O produto utiliza a menção de Produto Específico, o que obriga a que seja produzido mediante regras estipuladas no caderno de especificações, incluindo o processo de produção e o sistema de rotulagem.
Na fase comercial, o enchido pode estar acondicionado em embalagens de plástico, cartão ou outros materiais destinados à conservação de alimentos, tanto em atmosfera normal como em vácuo. Este produto regional deve respeitar todas as regras de produção certificadas na menção de Produto Específico, ostentando também a marca de certificação disponibilizada pela respectiva entidade certificadora.
Historicamente, a alheira terá sido criada pelos cristãos novos, de modo a escaparem às acusações de heresia por parte da Inquisição. Uma vez que a religião judaica não permite o consumo de carne de porco, estes judeus substituíram o típico recheio de um enchido por uma variedade de carnes, nomeadamente de galinha, perdiz, coelho, peru ou vitela, envolvidos numa massa de pão que lhes conferia consistência. Desta forma, não poderiam ser acusados de consumo de carne de porco, podendo usufruir igualmente da iguaria. Gradualmente, a receita popularizou-se entre os Cristãos, que começaram a adicionar-lhe carne de porco.
Ainda hoje, a receita da Alheira de Mirandela é considerada um elemento enriquecedor da região, possibilitando a produção de alheiras artesanais de excelente qualidade por toda a região de Trás-os-Montes. Recentemente, no âmbito do programa “As 7 maravilhas da Gastronomia”, a Alheira de Mirandela foi premiada e considerada um dos sete pratos mais relevantes da cozinha portuguesa, na categoria das ‘entradas’. O concurso, realizado este ano, consistiu numa votação realizada a nível nacional, entre 7 de Maio a 7 de Setembro, onde vinte e uma iguarias foram destacadas por um painel de especialistas, para serem, posteriormente, sujeitas a votação pelo público português. As ‘maravilhas da gastronomia’ foram eleitas pelo maior número de votos, independentemente da categoria, tendo a Alheira de Mirandela colhido o maior número de votos, de entre as iguarias disponíveis.
Embora a crescente litoralização e afluência às zonas urbanas tenha aumentado nas últimas décadas em Portugal, o reconhecimento nacional deste prato permitiu chamar a atenção dos portugueses para as áreas despovoadas do Interior - nomeadamente a região de Trás-os-Montes - que, apesar da baixa densidade demográfica, continua a distinguir-se pela gastronomia artesanal e tradicional.
Adriana Sousa
[artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Economia Regional” do 3.º ano do curso de Economia (1.º ciclo) da EEG/UMinho]
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