sábado, abril 13, 2019

A fruição social dos bens culturais das cidades

A patrimonialização de cidades ou centros históricos é alvo de intensos debates, tanto por parte de pesquisadores quanto dos próprios habitantes. Tais cidades, bem como os monumentos e conjuntos arquitetônicos nelas localizados, devem ser preservados – mas de que forma é realizada esta preservação? A quem devem servir os monumentos?
         É comum que alguns bens culturais, quando patrimonializados, acabem perdendo sua função inicial para tornarem-se apenas objetos de apreciação estética e cultural, o que está longe de ser o ideal para os moradores das cidades, que antes usufruíam destes bens. Mas há alguns exemplos que fogem a esta regra, casos que chamo de “valorização consciente”: a rede de transportes de bonde de Santa Teresa, que é património da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, grande atração turística do município. Os moradores do bairro utilizam-na gratuitamente, enquanto aos turistas é cobrado um bilhete de R$ 20,00 por viagem de ida e volta.
         Outro património que teve uma “valorização consciente” é o Mercado Municipal Paulistano. Localizado na cidade de São Paulo (Brasil), o edifício foi tombado em 2004 pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (CONDEPHAAT), por sua importância histórica e cultural para a cidade. O “Mercadão”, como é chamado pelos paulistanos, além de ser um grande centro comercial da cidade, chama a atenção por sua arquitetura e pela identificação que os moradores possuem com o local. A patrimonialização foi analisada pelos habitantes de São Paulo como bem-sucedida porque não modificou a finalidade do Mercado e nem a forma que os paulistanos usufruíam daquele espaço. Simplesmente, gerou mais investimentos e valorização do centro comercial, isto porque, desde muito antes de seu tombamento, os moradores já se identificavam com o Mercado. Segundo Sênia Bastos, esta identificação é essencial para que a valorização dos patrimónios seja consciente, pois isso leva à compreensão da identidade da própria cidade:
“[...] o morador reconhece o patrimônio da cidade na medida em que este alcança o status de um lugar de memória, de pertença, compõe sua história e integra sua cultura: monumentos, edificações, logradouros [...] a hospitalidade inscreve-se nesse contexto de valorização da memória e da história, no processo de tradução dos percursos diários na cidade de forma compreensível” (Bastos, 2006, p. 51).

         Um ponto essencial para que a valorização dos monumentos das cidades seja consciente, portanto, é não desatrelar os conceitos de “cultura” e “lazer” com os de “trabalho” e “cotidiano”. Os moradores do Rio de Janeiro e de São Paulo só reconhecem o bondinho e o Mercadão, respetivamente, enquanto patrimónios justamente porque ainda usufruem destes espaços em seu cotidiano, como meio de transporte e centro comercial. Segundo Ulpiano de Meneses:
“a cidade culturalmente qualificada é boa para ser conhecida (pelo habitante, pelo turista, pelo que tem aí negócios a tratar, pelo técnico, etc.), boa para ser contemplada, esteticamente fruída, analisada, apropriada pela memória, consumida afetiva e identitariamente, mas também, e acima de tudo, é boa para ser praticada, na plenitude de seu potencial” (Meneses, 2006, p. 39).

Não devemos, portanto, “petrificar” ou “museificar” os patrimónios das cidades para valorizá-los. Devemos, pelo contrário, centrar as preocupações nos principais fruidores dos patrimónios. Enquanto os habitantes das cidades os entenderem como espaços simbólicos de seu dia a dia eles serão frequentados – levando, assim, à valorização por parte da população e dos turistas.

Laura Mineiro Teixeira

Referências bibliográficas

BASTOS, Sênia. Hospitalidade: uma perspectiva para a requalificação do centro histórico de São Paulo. Revista Hospitalidade, São Paulo, ano III, número 2, p. 51-62, 2º sem. 2006.
MENESES, Ulpiano Bezerra. A cidade como bem cultural. V. H. Mori, M. C. de Souza, R. Bastos, H. Gallo (orgs.). Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo: 9SR/IPHAN, 2006.

(Artigo de opinião produzido no âmbito da unidade curricular “Património Cultural e Políticas de Desenvolvimento Regional”, do curso de Mestrado em Património Cultural do ICS, a funcionar no 2ºsemestre do ano letivo de 2018/2019)

Sem comentários: